Quarta,
21.
Prazer
imenso quando desço do quarto pela manhã e encontro ainda na lareira a arder o
resto de um bom cepo da véspera. Olhamo-nos olhos nos olhos e nessa introspecção
recomeçamos o diálogo que ficou suspenso na noite anterior.
- Fui ver o filme sobre Turner. Oh,
quanto me lembrei das minhas manhãs de domingo, em Londres, o frio que apanhava
ao atravessar o Tamisa para entrar do outro lado na Tate Gallery e ficar horas
estático a contemplar a magia das telas povoadas de profundos bosques
adormecidos ou revoltos mares ensandecidos! A bela e encantadora Tate de outros
tempos! Aos domingos quase deserta, com o seu café rente ao jardim, onde abancava
depois para tomar a bica com um scone e ver correr as horas mágicas como nunca
mais as vivi assim plenas de encanto e juventude, sossego e contemplação. Ia lá
quase todas as semanas ao encontro do meu tio Turner e de cada vez era sempre o
mesmo fascínio, cheio de novas descobertas, consentâneo com o meu estado de
alma metafísico que me levou a escrever suponho o meu primeiro artigo assinado
no jornal A Capital.
O filme
se tivesse de o classificar diria que é interessante. Mike Leigh, o realizador
de Mr Turner, embora, talvez, não tivesse o intento de recriar o século XIX, o
facto é que lhe deu no filme um charme que nos atira: decores e escolha das
casas, paisagem e indumentária. A interpretação de Timothy Spall, muito
realista, mas a lembrar Charles Laughton, alguém escreveu não me lembro onde e
com razão. As duas horas e meia que passamos seguindo os passos do
extraordinário artista, deixa-nos confortáveis e enche-nos plenamente. O lado,
digamos, psicológico é o que mais nos surpreende. Turner que dominou a luz, não
deixou no momento de morrer de dizer que “o sol é Deus”. Ele sabia de que
falava.