Domingo,
27.
Pensando
melhor, até não é tão mau manter os partidos em campanha eleitoral por este
país fora. Esta não devia ser de dois meses, mas de um ano. Porque, afinal de
contas, as campanhas não são só reveladoras do carácter dos seus líderes, como denunciadoras
das mentiras e desprezo pelas pessoas. O retrato disso é o súbito aumento de
clínicas e hospitais que passaram de duas autorizadas até aqui na Grande
Lisboa, para trinta e sete a fazer as famosas colonoscopias. Durante meses e
anos, centenas de pessoas tiveram que dormir na rua, passar horas em filas, ao
frio e à chuva, na sua maioria idosa, para conseguir a senha que permitia fazer o exame. Nem vale a pena
perguntar como foram estes tipos desumanos e arrogantes descobrir de um dia
para o outro tantos locais especializados no exame. Está na cara. Eu que tinha
alguma consideração pelo ministro da pasta da Saúde, perdi-a completamente. Gostava
de saber o que leva um homem daquele gabarito a prestar-se a estes jogos nojentos
que põem em risco a saúde, são humilhantes e não dignificam o ser humano. Ainda
por cima são testemunho da ligeireza e irresponsabilidade de como se faz
política em Portugal. É por estas e por muitas outras que eu não voto.
- Terminei os Textos Filosóficos de Cícero. Levei quase um mês a estudá-los,
porque o seu tradutor e apresentador, em profícuas e esclarecedoras notas de
rodapé, remetia constantemente para outros autores que grosso modo encontrei na
minha biblioteca e sobre os quais tive de reler páginas ou passagens
sublinhadas. A generosidade de partilha do professor J. A. Segurado e Campos
equipara-se em sabedoria e inquietação intelectual a Marco Túlio Cícero e
sai-se das suas páginas com a nítida sensação de riqueza e profundidade face à
vida e a nós próprios. Porque a filosofia antes de ser a amálgama de labirintos
incompreensíveis que hoje é, era um modo de viver que aspirava à nossa felicidade
e nos preparava para a morte. Pierre Hadot tinha razão ao afirmar que la grande majorité des écrits philosophiques
de l´Antiquité, c´est qu´ils correspondent à un jeu de questions et de réponses
(as célebres estruturas aporéticas),
parce que l´enseignement de la philosophie, pendant presque trois siècle,
c´est-à-dire depuis Socrate jusq´au premier siècle av. J-C., s´est presque
toujours présenté selon le schéma question-réponse. Por outras palavras, em
diálogo permanente entre o essencial da descoberta do outro e de nós mesmos.
- Esta manhã, na missa dominical,
postou-se na minha frente um homem quadrado, alto, espadaúdo, que ocupou o
rectângulo que eu tinha do altar. Todo ele expelia um insuportável odor
lascivo, que descia pelo corpo enorme, de grossas mãos e espáduas largas,
envolvendo-me em pensamentos pouco consentâneos com o lugar e o momento... Ao
longo da liturgia, transformou-se num ser minúsculo, rendido à oração, exemplo
de fiel conhecedor do Evangelho, e quando chegou aquele momento que traz ao
templo o desassossego na forma de saudação à direita e à esquerda, o homem
voltou-se para mim, num tom doce, evolvente: “a paz do Senhor”. A minha mão,
ficou por instantes a boiar na dele, e o seu olhar profundo, inquietante, fixou
o meu sem que nenhum de nós adivinhasse a travagem instantânea das batidas
cardíacas. As igrejas são muitas vezes lugares de misteriosos encontros.