Terça, 12.
Fiz por assim dizer as pazes com a Carmo Pólvora. Eu explico. Desde aquele fatídico almoço no 1800 aqui narrado, nunca mais atendi os seus insistentes telefonemas e furtava-me a encontrar-me com ela. Isto durante mais de um ano. Acontece que outro dia, para preencher o serão, desligada a televisão, após as notícias, peguei no livro que ela em tempos me havia oferecido e mergulhei a fundo nele. A obra é um trabalho conjunto com o poeta João Rui de Sousa (alguns poemas são magníficos) e redundou num trabalho absolutamente sublime, poderoso, belo, levantado do fundo mais fundo da extraordinária pintora que ela é. Fiquei a flutuar de página em página, rendido à magia da sua forte abstracção, onde a presença da realidade é transformada num símbolo poético que abraça o espaço e lhe dá a dimensão mítica de singular beleza. O domínio da cor, a introdução dos valores simbólicos, os sombreados que amparam e fazem sobressair a ideia enquanto matéria apenas abordada, mas suficientemente presente nas linhas melódicas do traço e na definição do objectivo. Até perto da meia-noite ali estive, absorto, a olhar cada pintura, a ler o poema que a acompanhava, abraçado pelo silêncio e o escuro da noite que jorrava estrelas sobre a obra luminosa e incandescente de Carmo Pólvora. No dia seguinte liguei-lhe. Ela atendeu, surpreendida. Quis saber a razão daquele contacto ao fim de tanto tempo. Disse-lhe que depois de ter olhado atentamente a sua bela obra plasmada no livro Respirar pela Água, não há zanga nenhuma, nenhum João Corregedor à face da terra, que possa impedir de lhe dizer quanto admiro o seu trabalho. A tua arte vingou o desgosto daquele asco de almoço. Parecia apatetada.
- Lição do moderno português de hoje utilizado por todo o lado: “Qual é que é o problema?”