Terça, 30.
Adoro o silêncio não só porque é nele que Deus vive, mas porque a consagração da vida faz-se com ele. Todas as manhãs, quando abro a janela do quarto e olho a presença das árvores e tudo o que me cerca, sinto-me um privilegiado a admirar a sublimidade que tenho diante dos olhos à mercê de todas as jubilações e acção de graças. As auroras acordam frescas, com uma leve transpiração de sensualidade a banhar-lhes a cor, o jeito de se entregarem à magia do dia que rebentará daí a instantes. O Sol ainda dorme nas costas do Universo, entorpecido na fúria que queima e incendeia. A hora que encontro quando escancaro a porta da cozinha, é a hora-esperança renascida das cinzas da noite. De então abro de par em par todas as janelas e portas do rés-do-chão para que a cócega insinuante e fresca da manhã me invada, me acaricie, me envolva na ternura do princípio do tempo. Tempo esse na chance da chegada a este paraíso, o deslumbre da terra abandonada, coberta de vegetação alta que não deixava ver o chão, a casa arruinada cheia de ratazanas, os invernos alastrados como gargantas abertas ao céu presente na limpidez de cada momento, timbre inaudível, segredo que não se descobre à realidade... Os amores aqui nascidos e enterrados, as noites de luzes abertas no momento do reencontro, fugidio tantas vezes, com um rasto de mágoa, um sorriso triste, uma desistência que a solidão aproveitou. Tantas vozes aqui se reuniram para romper as tardes à lareira, ouvindo o murmúrio da lenha, o silvo agudo do pássaro ao telhado, serões falados, discutidos, salmodiados de preces que não chegaram ao deus do amor. E sempre, por sobre tudo, este doce e compassivo silêncio que tudo apazigua, absorve, fortalece e dá sentido aos dias que enchem uma vida.