quinta-feira, julho 18, 2024

Quinta, 18.

... o exílio do nosso poeta não digo comunista, mas inscrito no PCP, talvez porque essa organização era na clandestinidade o padrão principal de relevo, de tenacidade e de perseverança contra o regime autoritário e humilhante de António Salazar, tivesse levado naturalmente o autor para as margens sócio-políticas em que nunca se sentiu confortável. Alegre amava acima de tudo a liberdade, havia nele uma pulsão de generosidade que se estende pelas páginas das suas memórias e continua em certo sentido as vivências familiares. Depois, penso, como todas as sociedades fechadas, secretas, os seus simpatizantes e colaboradores, encontram nelas o afago, a segurança, o timbre epopeico que faz da vida uma sedutora aventura em prol de uma fantasia que a realidade exposta dos governos comunistas representa. Ambos os regimes, o fascista e comunista, exprimem o domínio do Estado e o desprezo pelo cidadão enquanto expressão individual do ser, em importância pelo colectivo que é muito mais fácil de dominar que o indivíduo isolado que tem em si a força da solidão e independência. Manuel Alegre deixa o país quando é informado de que a PIDE o procura. Antes porém, faz briosamente a tropa nas ex-colónias portuguesas, enfrenta a morte, participa em inúmeras reuniões secretas, conhece gente a viver na clandestinidade, é ajudado pelos membros do Partido, e, sobre tanta agitação e doenças pelo meio, prossegue os estudos universitários, casa-se, escreve poesia, edita clandestinamente, conspira, participa em comícios onde é orador, incendeia a sua existência do calor constante da embriaguez. Se há vida vivida, é a dele. Ao morrer pode dizer como fez o seu amigo Pablo Neruda “confesso que vivi”, mas do “camarada Ricardo”, em verdade, nunca lhe vestiu a pele. É desmobilizado para ser preso pela segunda vez pela PIDE. Desse período nascem poemas que nunca morreram: “A Praça da Canção” (quem não se lembra!), “Rosas Vermelhas”, escreve cartas como quem mantém um diário. Tinha 27 empolgantes anos e uma vida dura de combatente pela liberdade. Libertado, regressa a Coimbra. Mas a cidade estava outra, como outros eram os estudantes, a Academia, as ruas e cafés, os teatros e cinemas. A festa tinha murchado, já não havia a euforia da sua juventude, “falava-se mais baixo, quem se sentava à mesa do café olhava para o lado desconfiado”, mas “as raparigas já podiam entrar nas repúblicas”. Pouco tempo depois, faz uma longa viagem em fuga para Paris onde conhece Álvaro Cunhal e outros nomes sonantes da esquerda portuguesa. Vai à Rússia, participa activamente na Frente Patriótica. Narra a forma como o “general sem medo” é apanhado nas malhas da PIDE e atraído a Badajoz onde é assassinado por Rosa Cavaco. É, contudo, em Argel que passa a maior parte de refugiado, à Frente da Voz de Portugal. Com ele muitos nomes conhecidos do reviralho. As coisas complicam-se quando se dá a ocupação militar da Checoslováquia pela União Soviética. Aos microfones da Rádio Liberdade condena a invasão. “Dez  anos com entusiasmos, crenças e descrenças, querelas de exílio, rupturas irremediáveis como a que se seguiu à ocupação da Checoslováquia, pela tropas do Pacto de Varsóvia”, lamenta-se. Até que Salazar cai da cadeira, e a esperança toma altura. Altos dirigentes da esquerda estavam em Paris a pensar uma estratégia pós-Salazar quando a notícia desagua. O nome de Mário Soares deportado em São Tomé, aparece. Cunhal estava sempre omnipresente. Não resisto a transcrever este bocado de prosa por dizer muito do chefe do PCP e do socialista que viria a ser Manuel Alegre.  Ambos encontram-se no café Sarah Bernhardt, em Paris. A dada altura, Alegre puxa de um cigarro que acende com isqueiro de Cunhal e inadvertidamente leva-o ao bolso. Acode o dirigente comunista: “Esse não, foi o último presente do meu pai.” Comentário de poeta: “Tinha lágrimas nos olhos, nunca mais esqueci, porque me parecia impossível que aquele homem pudesse chorar.” Falei do exílio? Talvez. Mas como remate não resisto a falar do exílio em que nos encontramos cada um consigo, nas longas horas de excitações, combates, desafios. Manuel Alegre regressou à Pátria logo que pôde. A páginas 193, leio este desabafo: “Pelas circunstâncias da minha vida, fui sempre um escritor solitário. Nunca pertenci a nenhum grupo, a nenhuma corrente, a nenhum café literário. Estive dentro do poder político, mas nunca do literário, que é o mais sectário e totalitário de todos. Quase não pude partilhar o que escrevia. A maior parte das vezes, tal como na cela da PIDE, em Luanda, dizia em voz alta, para mim mesmo.” Arredado do país mais de dez anos, Manuel Alegre vai retomar a política, ser dirigente, deputado, candidato à presidência da República, mas desta vez em democracia. 

O 25 de Abril trouxe-o como a muitos outros...