terça-feira, setembro 24, 2024

Terça, 24.

A podologista atirou com desdém o penso higiénico para o cesto do lixo. Examinou de seguida o estado do meu pé direito e quis observar também o esquerdo que tende a fazer perder a cabeça a mulheres feitas e a raparigas imberbes. Depois de me ouvir dizer que me sentia duplamente coxinho coitadinho, e que nem o facto de a perna que os cavalheiros e os rapazes admiram com olhar cobiçoso no seu estado equilibrava o meu caminhar trempedanças. Como médica, não me pareceu impressionada e logo pôs mãos ao trabalho. Com o bisturi, rapou os dois calos que se entrechocavam fazendo doer quando caminhava. Depois, utilizando plasticina(?) moldou uma prótese que foi aperfeiçoando e ajustando aos meus dedos. Os dois finais em conflito, ficaram isolados e o modelo passava para o dedo maior atravessando o peito do pé. Assim protegido, enfiou-me a meia e marcou-me consulta para daqui a dois meses de forma a fazer duas palmilhas (julgo que no mesmo produto) “porque essa que usa no pé esquerdo está completamente deformada – daí o esforço do pé direito”. Conclusão: quando à noite tirei o molde e o lavei como me indicou, senti-me aliviado de todas as dores que pareciam ter-se acomodado de vez.  A pergunta que agora faço a mim mesmo: que fazer ao pacote de pensos higiénicos? 

         - Três longas horas de escrita no romance. Isto de ter ideias todos os dias, não é pera doce. Mesmo este registo, tem muitas horas de trabalho e para onde vou levo comigo o croché. Aquilino tinha razão – a criação de um romance faz-se ponto a ponto na encruzilhada da matéria de onde parte a criação. 

         - Envelhecer. Interrogo-me muitas vezes, sobretudo depois daquele dilúvio sanguíneo de Fevereiro, quando começamos a declinar. Cismando sem descanso, chego à conclusão de que envelhecer é antes demais uma atitude mental, um súbito esquecimento de todas as quedas, lapsus memoriæ, dores disseminadas pelo corpo que tivemos na juventude e não lhe atribuímos o princípio à velhice. A ideia de que a idade pesa, de que o fim se aproxima, é absolutamente imprópria à luz de um facto redundante: morremos porque nascêramos. Quero dizer que a morte é a companheira de uma vida e não de um velho. Falecemos não porque temos esta ou aquela idade, mas porque a missão de qualquer ser vivo é esse encontro intenso e absolutamente deslumbrante com a morte. Todo o mistério da vida, está resumido no segundo em que deixamos este mundo para conhecermos um outro, provavelmente mais arrebatador porque nos dá a conhecer o verdadeiro sentido da nossa passagem por esta terra. A descoberta do autêntico sentido  une os dois extremos – a vida e a morte. Todavia, é nesta que o futuro se espelha. Somos eternos no sagrado que levámos da nossa existência terrena. Porque toda a vida possui implícita uma missão, ainda que nós não consigamos decifrar o sentido da nossa viagem, as apostas que fazemos, a orientação que fomos pegando e largando ao longo do tempo. Não estamos no mundo sós. Nunca estivemos, nem sabemos de alguém que tenha estado. Viver implica a existência dos outros, da Natureza, até dos desgostos, da solidão, do sofrimento. Estar frente a frente com estes aparentemente estranhos sentimentos, é criar vida, é aprender a conhecer os vários ângulos da existência a caminho da morte, e fazer a experiência intensa que a dor ferra no nosso corpo e no nosso cérebro. Nada do que aqui vivemos escapa ao destino que nos espera. É por isso que viver intensamente nos transporta para o patamar da aceitação da morte. Viver a morte através de uma vida plena, curta ou longa, é decerto o meio mais eficaz de nos realizarmos enquanto seres vivos que esperam a morte como destino e salvação. Não há velhice no tempo que passa, na paisagem que se detém para nosso deleite, no cochichar da voz humana nos beirais da felicidade que nos une à plenitude da exultação da vida. Vivamos, pois. Porque até na decadência existe a dignidade de uma vida espraiada nos lodos do sofrimento, nas alegrias e tristezas, nos dias sombrios e nas manhãs claras. A morte espera-nos para nos deixar noutra forma de vida que eu creio seja eterna. André Malraux, o ateu, quando lhe perguntaram como queria que o seu filho morto num acidente fosse a enterrar, disparou: “Quero um enterro religioso, porque o meu filho não é um saco de batatas.”