quinta-feira, setembro 05, 2024

Quinta, 5.

Terminei a leitura do extenso romance de Paul Bowles, Deixa a Chuva Cair. Que maravilha, que longas horas perdido nos meandros da história extremamente bem conduzida pelo autor e magnificamente traduzido por Ana Maria Freitas e editado pela Quetzal. Aquela geração de autores americanos que absorveu um tanto da cultura europeia, nomeadamente, a francesa – Burroughs, Truman Capote, Gore Vidal, Tennesse William, Ginsberg, Jack Kerouac – veio trazer para a literatura uma poção de magia extraordinária. A construção romanesca, o sentido interior que cada personagem carrega, aquele olhar que absorve a paisagem e introduz uma forma de escrever que mistura uma certa ligeireza americana com a densidade europeia, é algo que nos enriquece e reconforta. Porque está lá a alma humana inteira. Cada personagem vem até nós desimpedida da impureza do cinismo, da banalidade, da narrativa acelerada por convulsões artísticas que nada têm a ver com a arte e é apanágio de muita literatura actual. O que se conta ali, é a vida passada pelo crivo existencial do escritor. Não se pode fazer uma obra de arte sem a experiência da vida vivida, sem o drama metafísico, a dúvida, o sofrimento e a solidão. Bowlles traz para o seu livro tudo isso e põe em realce, sobretudo, o seu olhar, a perspicaz natureza que o observador que ele foi transformada num lirismo impressionante que toca todos os pormenores e invade a essência  própria história, que digo eu, da própria vida. O escritor viveu cinquenta e poucos anos em Tânger, sempre rodeado de rapazes com quem mantinha relacionamentos amorosos e sociais, estudou profundamente o modo de ser árabe, a junção de civilizações que ali aportaram depois da Segunda Grande Guerra, as questões políticas com Espanha, analisou o interesse do seu país, a espionagem crescente do mundo americano sobre o muçulmano, a cidade dividida entre a Zona Internacional da qual fazia parte o antigo colonialista e o país propriamente dito, com o seu modo peculiar de  vivência, costumes, filosofias e língua. Seguindo um rapaz americano que vem dos EUA para trabalhar na firma de um outro conterrâneo, Dyar, conta-nos o sub-mundo de um país que se vai perdendo entre o apelo europeu e as suas regras restritas, religiosas e sociais, impulsionado pela Coca Cola cujo estímulo foi congregador de um certo estilo de vida. Há na caracterização desta personagem muito de Paul Bowles, considerando outras obras que li do autor. No caldeirão de usos e costumes que era Tânger nessa época (eu visitei umas quatro vezes Marrocos e devo confessar que muito do que o escritor descreve e conta, pude eu observar) ainda havia zonas privadas onde os nativos imperavam soltos e vivos de paixões. Perto de Zoco Chico fica o bar Lúcifer, cuja proprietária é uma grega de nome Papaconstante. É uma casa de meninas, frequentada pela fina flor francesa e americana. É lá que Dyar encontra um amor não correspondido que o vai levar a um tempo de interrogação, a uma eterna introspecção, que o Kif ajuda (eu experimentei esta erva e tive mais ou menos os mesmas sensações que o protagonista) ou é suposto ajudar. A descrição da paisagem, é fabulosa. O escritor parece ter consultado uma vasta enciclopédia de botânica, tal o caudal de emoções, a mistérios dos elementos naturais como os minerais, a flora com o clima, numa harmonia poética que nos deixa no limite da beleza. Só para terminar. Este romance não se compara com nenhum outro e muito menos com a literatura que hoje sai vomitada, solta, com o número de páginas reduzido, historietas ridículas que não trazem nada, absolutamente nada à cultura, à arte, ao conhecimento humano. 

         - Enfim, ao cabo de três semanas, vou poder deixar a prisão ao volante do Skoda. Mas fiquei depenado.