Quarta, 5.
Não auguro nada de bom para a União Europeia, nem tão pouco para a democracia. São os regimes ditatoriais que se apresentam mais organizados, controlando a vida dos seus escravos não no sentido do progresso, mas da corda que aperta quem ousa enfrentá-los. É suposto que a maioria das pessoas o que ambiciona é ter o mínimo, nas tintas para a forma de governo que a mantém, posto que a existência seja monotonia benfazeja que encaixe as prioridades básicas. O governo da nação foi sempre a luta de poucos; a conquista do poder a ambição de muitos. A História que Napoleão dizia ser “uma mentira que ninguém contesta”, há muito que se vem fazendo na troca de teorias gastas, de ódios e esquecimentos, revoltas manchadas de sofrimento e sangue. Os sistemas democráticos hoje são a balbúrdia instalada, as lutas intestinas, segmentações que volteiam a bandeira das cores desenhadas nos finais do séc. XVIII e brandida no início do séc. XX anunciando paraísos de sóis eternos. As diferenças acentuam-se cada vez mais nos extremos, enquanto o centro – onde em princípio está o equilíbrio – vê crescer a vala onde tombarão sem remédio. Apertados entre o capitalismo desvairado e o temor das prisões a céu aberto, a população disfarça o susto alimentando o desvario alienante do futebol, dos divertimentos que não acrescentam nada ao pensamento, das religiões que prometem o que Cristo nunca anunciou. A ordem tornou-se volátil, quem mais ameaça é mais ouvido, a competência e seriedade estão refréns dos populismos que todos praticam, vive-se de esmolas, de costas voltados para o exercício da projecção do futuro, trabalhando pouco, gastando muito, o presente é mais cativante quando o fim é a morte a qualquer momento. Projectar é acreditar na História enquanto diccionário de experiências vividas. Os mais competentes recuam, empurrados pelos arrivistas que tudo prometem, utilizam a ameaça, inventam a calúnia, exercem a brutalidade como estratégia de combate ideológico. A capitulação das nações acontecerá em catadupa e de nada serve actos de fé, esperança e optimismo agitados como bandeiras brancas – o poder derruba todos os sonhos.
- Ontem lá fui ao hospital da Luz, sob calor tórrido, em busca do meu amigo. Desta vez porém, meti na cabeça que iria até ao fim e de lá não sairia sem perceber o mistério Tó. Comecei pela recepção da entrada, onde está uma fileira de empregados, todos masculinos, fardados, de fais comme si comme ça, O que me atendeu, levou muito tempo a procurar no computador o nome do médico, portanto, clínico com muitos anos de serviço naquela açoteia com aspecto de aeroporto, tal a multidão, os espaços de veraneio, a babilónia que se cruza nos recintos públicos – corredores, escadas rolantes, elevadores, salas de espera, wc, auditórios, esplanadas, cafés, num corrupio de gente escarranchada nos cómodos sofás por todo lado, como se estivesse hospedada num hotel de cinco estrela. Não se veem macas, nem doentes chorosos, nem dramas de nenhuma espécie. Ali, sob ar condicionado, sem sol a entrar desvairado, está-se bem, alguns vi a bater a sesta. Espero e torno a esperar (o meu calo geme, sobretudo depois da caminhada pedestre, aos encontrões a obras ao longo do caminho). Até que ao fim de dez minutos, o rapaz levanta o nariz adunco e informa-me que o nome do médico não consta no computador. Insisto, desta vez quero ir até ao fim. Ele torna à máquina, faz várias viagens dentro dela, pergunta-me qual a área do meu amigo, respondo Medicina Interna. Nova longa, longuíssima espera. Por fim ele aconselha-me que suba ao terceiro andar que é lá que estão as consultas externas. Aí vou eu escada rolante arriba. Vejo-me de súbito num vasto espaço, com dois balcões de atendimento, um logo no início, outro mais adiante. Opto por este. Dirijo-me a um friso de raparigas, umas giras, outras sisudas com caras de madre superiora, que estão num afã de conversa fiada entre elas. Tomo a mais simpática, conto-lhe ao que venho, repito as mesmas perguntas, ela vai também ao computador, pesquisa, indaga à direita e à esquerda, mas ninguém conhece o nome que repito e volto a repetir. “Esse nome não aparece no computador. Tem a certeza que ele trabalha aqui?” Entretanto, aparece um homem feito, largo de feições, olhos tristes e cansados, que se me dirigi: “Olhe, suba ao quarto andar que é lá que estão os internados. Pergunte lá pode ser que tenha sorte.” Aí vou de elevador para a torre B, em sintonia com a minha desgraça, em vez de subir o mastodonte desatou a descer a toda a velocidade. Pára com um soco no rés-do-chão onde recolhe uns quantos turistas. Ao chegar ao quarto andar, tenho à esquerda um balcão simples, onde está uma única rapariga, simples, de sorriso cativante, disposta a ajudar-me. Recito de novo ao que venho. Ela enfronha-se no computador, pesquisa, e a pouco e pouco vai mudando a expressão: “Eu não vejo esse nome em lado nenhum.” Respondo que não é possível, que eu já falei com ele em tempos naquele hospital. A miúda torce o nariz a diz: “Telefone-lhe. – Não tenho o número, perdi-o, a Mackintosh evaporou-me a minha lista de contactos.” Então ela fala ao telefone com este e aquela, e passado um certo tempo, aconselha-me a ir ao primeiro andar onde funciona os Intensivos, “disse-me uma colega que é lá que o doutor trabalha”. Aí vou eu de coração aberto, cheio de esperança de ver concretizada a minha viagem. Como nos outros andares, aí está mais um punhado de meninas conversadoras atrás de um balcão. Falo com a primeira que de pronto consulta o computador e me diz que “com esse nome não temos nenhum médico”. Fico lívido. Ela desaparece, mete-se por uma porta não longe dali e retorna: “Ele não veio hoje e não sabemos quando vem. Ou está de folga, ou de férias.” E fazendo uso da linguagem actual: “Mas, sim, é nos Intensivos que ele trabalha.” No táxi que me devolveu à estação de comboios, murmurei: “Hospitais que têm médicos sem nome, só numa linha de montagem automóvel.”