domingo, março 16, 2025

Domingo, 16.

Veio aí o John desafiar-me para um café. Forma de falar porque estivemos à mesa em cavaqueira para cima de hora e meia. Durante e longa e divertida conversa, eu, volta que não volta, tinha de lhe reconstruir o português porque de contrário ninguém se entendia. Ele vai falando como pode e o esforço é meritório e até engraçado. Contudo, quando se mete pelo esoterismo, o seu prato favorito, as coisas tombam para a desgraça. A cabeça dele está formatada à moda americana, crente em tudo e dando crédito ao que lhe é complicado absorver. O que há nele de mais salutar e extensível a milhões de americanos, é uma certa infantilidade e disponibilidade para ajudar quem necessita. Fá-lo franco e desinteressadamente, sem assomar por um minuto a retribuição financeira. Gosto dele, e o nosso convívio termina sempre numa festa onde só faltam os foguetes. 

       - Ana Gomes tanto pode tudo como o seu contrário. Agora meteu-se com o proprietário do grupo Soverde, dando razão ao seu partido nas insinuações e acusações que moveram contra Montenegro. A ilustre senhora, em tempos mais interessante no seu modo de estar na política, fala de “branqueamento de capitais, no sector dos casinos online” sem que se perceba a relação com o que apregoam contra o primeiro-ministro. 

         - Como se previa, é Zelensky que conhece bem Putin, que tem razão. Aquele cessar-fogo por trinta dias que ele e Trump acordaram e este mandou para anuência ao seu melhor amigo o ditador russo, já foi fintado com o retardamento da resposta ao egocentrismo americano. Enquanto o documento vai e vem, os combates e apropriações de território ucraniano não param. Quem nunca duvidou do déspota da Casa Branca, foi Justin Trudeau, assim que ouviu falar do Canadá vir a integrar os EUA como o 51º Estado, logo se insurgiu em valentia e sem medos. Sai do cargo de primeiro-ministro em hossanas pela sua coragem e o senhor que se segue, retoma a sua tenacidade e já avisou Trump que não conte com isso. A Europa da UE foi mais lenta, tergiversou, fez e continua a fazer muitas reuniões (eles adoram aquelas intimidades bem regadas e vividas em hotéis de 5 estrelas), sempre esperançosos que não lhes caia em cima muito trabalho. A modorra é o seu estilo de vida. 

         - É curioso: com a idade estou a coxear melhor. Nunca imaginei. Este meu andar como se pregasse ao chão o pé esquerdo, atirado pela perna direita com desprezo, faz-me lembrar quando trabalhei na rádio o abelhal de coxinhos coitadinhos que possuíam programas radiofónicos na ex-Emissora Nacional, à Rua do Quelhas. Aquilo era um espectáculo digno de se ver! Havia coxearia de todo o género e gostos. A televisão da altura não tolerava coxinhos que balanceavam o corpo e obrigavam os cameramens a estarem atentos de modo a que não saíssem do enquadramento. Daí aquela multidão de senhoras e senhores, desgraçadinhos, obrigados a esconderem-se com vozes melodiosas que o ouvinte imaginava serem produto de um todo excitante. E talvez seria. Porque eu sempre tivera o melhor nesse particular, não só porque era bonitinho, ainda porque era coxinho, coitadinho. Eu percebi isso muito cedo, mas foi quando regressei de Londres, cabelo aloirado pelos ombros, calças “à boca de sino”, ar descontraído que lembrava um estrangeiro, estar-me nas tintas para os piropos que eram despejados dos carros aos semáforos, uma forma de pensar para altura um pouco bizarra, a independência que os rapazes e sobretudo as raparigas não possuíam, fez de mim um tipo original que a todas e a todos atraía. Não sei se conservo esse fascínio, sei que aos meus olhos há qualquer coisa que se vem desenhando, mas que não sei se para o melhor ou para o pior. Fascina-me a decadência, desde que sustentada por uma certa áurea de mistério e acessibilidade. Porque quem somos, sendo o que somos, entramos no outro abraçando todos os mistérios que nele se escondem na antevisão da morte. É esse patamar que ouso espreitar em certos momentos, é esse deitar o olho pela frincha iluminada do exterior, do lado do mundo ante-visado, que me afoito em lucubrações de horas. Sei que tudo, ou antes o fundamental, está por descobrir, por viver. O essencial começa quando expiramos o derradeiro suspiro. Nada do que aqui nos envolveu – paixões, lutas, riqueza, conhecimento, amores, louvores, ódios – contará para o extraordinário destino que se segue. Mortos, somos todos pertencentes à mesma família, ninguém se distingue, nem ninguém leva o que neste mundo o diferenciou. De Gaulle, quando a sua filha anormal morreu, disse: “Agora, minha filha, és igual a toda a gente.”