quarta-feira, agosto 14, 2024

Quarta, 14.

Aqui chegado, nada está tão louco e intacto como antes. Lembro-me quando escrevi os meus primeiros livros, fi-lo num verdadeiro estado de loucura, horas a fio, a esferográfica a correr sobre o papel, as ideias em cachão a chegarem ao meu cérebro completamente estafado e despejadas para o caderno num jacto. Hoje, cada palavra é pensada, apagada, reescrita, cada parágrafo lido e relido. Só quando me acho satisfeito prossigo, e daí a precisão de uma hora para encher a folha do computador (o Saramago dizia-me que ficava satisfeito com duas páginas/dia). Et pourtant. Quantas vezes, ao chegar a casa, abato todo o trabalho da manhã! Nada do que escrevi antes me agrada, não sinto a voz das personagens, não reconheço a sua personalidade, os comportamentos que as distinguem, o clima que as enreda numa vida ali contava à flor dos sentimentos, dos desencontros, da alma humana que tece nos silêncios da vida o húmus que nos identifica e dá grandeza ao ser único que habita em cada um de nós.  

         - De balde igualmente para o dia-a-dia numa quinta, longe e equidistante do rumor da cidade. Se faço bem duas ou três coisas lá fora, depois das regas diárias, da rotina de sobrevivência comum a cada um de nós, fico encantado e logo me apetece acrescentar mais qualquer outra modesta actividade como, por exemplo, hoje, apanhar amêndoas, figos, cortar a relva em torno da piscina. Pega-se-me uma tal satisfação, que me é impossível descrevê-la. Como se o dia, inteiro e vasto, me abraçasse em reconhecimento, assim eu me recolho em acção de graças ao Criador por me haver concedido o vigor, a protecção e a capacidade de continuar o meu existir abençoado pela Natureza, o silêncio, a obra oculta de todos os anjos e arcanjos, vindos não sei de onde, de asas abertas de luz, cantando em uníssono as alegrias do dia. Viver é isto – mergulhar profundamente na vida. 

         - Sem esquecer as dores dos outros, a solidão e o ostracismo que a vida de hoje aprofunda e amargura. Devemos lutar com todas as nossas forças contra o egoísmo, as fantasias de ideologias que reduzem o homem a mero instrumento de uns, o sectarismo, a prepotência, a desigualdade, a arrogância dos ricos ante a miséria que esmola às suas portas, a ideia que o progresso está no aprofundamento do capitalismo. Todos sabemos hoje, se estivermos atentos, de que lado está o equilíbrio, a honestidade, a máfia partidária. Se estamos condenados a viver em comunidade, então façamos que todos juntos, acordamos em regras humanas, solidárias, onde a justiça para todos impere e onde ninguém possa ser excluído do direito a uma vida condigna. Todos sabemos, e nós portugueses mais do que ninguém, que só obtemos a dignidade enfrentando corajosamente os desvarios do poder dos sucessivos arautos da democracia vendedores de banha da cobra. 

         - Continuo recluso. Felizmente tenho o necessário para sobreviver. Ontem o António desafiou-me para ir à Brasileira. Respondi-lhe que não podia porque não tenho transporte e logo ele: “Que ideia a tua de viveres num sítio desses!” Vindo de quem vem, não tenho nada a acrescentar. O meu amigo, tem a sorte de ter casado com uma mulher sólida, mais sábia que ele, com carta de condução, boa cozinheira, e nestas condições, resta-lhe ir todos os dias ao Chiado, regressar a casa para almoçar, sair ou não de tarde e adormecer com o cérebro cheio do patuá do facebook, dos filmes televisivos, da ânsia de vir a ser o maior pintor português da sua geração... Sendo ele uma jóia de pessoa, nada mais digo. Cala-te, portanto. 

         - Estamos tramados, sobretudo os jovens para quem os instintos sexuais são impulso de vida e muitas vezes de morte. Apareceu agora uma estirpe do vírus, Monkeypox, e Portugal já conta com pelo menos 240 casos. Trata-se de um vírus muito contagioso, de pessoa a pessoa, que passou para os humanos em 2022 e originalmente vivia entre os macacos. Não se propaga pelo ar, pela respiração, só pela pele, isto é, mãos, beijos, sexo.