Terça, 7.
Devia falar de qualquer coisa, de qualquer facto, mas o pensamento voa em outro sentido onde a aridez submerge por sobre o vazio que tudo inunda. Para não ficar calado, digo que no final do ano, em três dias, comecei e acabei o romance de Bruno vieira Amaral, toda a gente tem um plano com umas escassas duzentas e poucas páginas. O primeiro capítulo quase me obrigou a atirar com o livro para o lado, mas depois, a pouco e pouco, movido pela curiosidade da dita “moderna literatura” prossegui. Não é que a história de Calita (a personagem principal) me atraísse por aí além, nem tão pouco a rajada de outros intervenientes na história, mas pelo, digamos, olé olé da escrita. Tudo na obra parece sobrevoar, numa pressa louca, que não nos detém a esmiuçar a personalidade, os dramas e a vida dos infelizes africanos que na Margem Sul levam uma existência de guetos que são pequenos territórios de Angola, Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe. Na literatura francesa, Paul Morand, foi um pouco este arquétipo, embora alimentado por uma cultura universal. O romance viaja continuamente entre o presente e o passado, numa reviravolta que nos deixa surpreendidos porque é o furor do movimento que parece impregnar cada página. É um toque e foge que não nos solicita o conhecimento profundo dos principais intervenientes da história. Sabemos, de passagem, alguns dos seus tormentos, mas estes não parecem tocá-los, como se a vida com os seus alçapões e perigos, fosse uma camada da existência que se sobrepõe em cada dia marcando indelevelmente cada fugaz momento. Sem lhe tirar mérito, a toda a gente tem um plano penso faltar-lhe consistência literária, ou, dito de outro modo, essa terá sido a intenção do autor. Eu gosto da literatura que me pede continuamente um ajuste de contas com a história, aprecio as personagens que me fazem pensar, com quem eu sofro, com quem vivo enquanto conheço a sua história e nunca depois, fechado o livro, me liberto delas. Vou ter que ler mais alguma coisa de Bruno Vieira Amaral. Não tanto porque tenha detestado este romance, mas porque no capítulo XIII vislumbrei a capacidade escondida do romancista.
Para quem começou o dia sem nada para dizer, o que aqui ficou expresso diz muito do interesse da cultura não só na minha existência, como na daquelas e daqueles para quem o conhecimento não existe sem pessoas predispostas a não aceitar a insignificância dos dias que nos chegam apenas através do futebol, dos concertos blá blá e dos longos e fastidiosos dias à manjedoura da TV e da sarna do telemóvel.