quarta-feira, janeiro 15, 2025

Quarta, 15.

Uma espessa camada de geada atapetava toda a quinta. Assim que abri a janela do quarto, olhei o vasto manto branco e fiquei por instantes a admirá-lo pensando como a natureza é criativa. Nunca nada se repete, há em cada Inverno e em cada estação, uma correnteza de novidade, de originalidade que nos subjuga. O Sol veio pelas nove da manhã, mas o chão continuou agasalhado com o seu cobertor alvo até perto do meio dia. Foi a pouco e pouco que as ervas se descobriram, que a terra floresceu entregando-se à cintilação dos raios do Sol. O próprio silêncio até então pesado, abriu-se num rumor quedo, quase ciciamento, que em uníssono com a vegetação voltou a planura do tempo sobre camadas pesadas do tempo de outros tempos...  

         - A democracia desceu à imagem de Donald Trump. Como é possível que um homem acusado de não sei quantos crimes, charlatão, mentiroso, violento possa ser eleito presidente da maior nação do mundo? Quantos como ele a partir de agora irão renascer das cinzas onde a decência e o equilíbrio os sepultou? Com tudo isto, é a Democracia que está em perigo, é a alienação e a mentira que vai sepultá-la, é a arrogância que o dinheiro impõe por sobre os valores éticos, sociais e humanos que a vai exterminar. És pobre, morre que não fazes cá falta; és doente, desaparece que não serves para nada; és velho, desaparece porque já estás a mais; tens alguns bens, não mereces tê-los porque os adquiristes com esforço e o esforço só sob a nossa escravidão. Os Putin, os Xi, os Kim Jong-un, os mais pequenos da Ásia, os  pequenotes das áfricas, os endinheirados das Arábias, e os que, em nome da democracia, são déspotas, violentos e absolutos vão entender-se às mil maravilhas com o chefe máximo eleito Presidente dos Estados Unidos da América. Horror! Horror! Onde encontrar refúgio senão em Deus. Ele que através do Seu Filho, concebeu a palavra AMOR. 

         - Li as primeiras cem páginas de L´ Éducation Sentimentale. É curioso como Flaubert, Zola Hugo, Proust este quase cem anos depois da sua publicação reanimou a obra e alguns mais que marcaram o século XX sobretudo a primeira metade. Não só na forma, como no conteúdo, onde o detalhe acentuava a personagem e fazia ressurgir a história. Aliás, quando leio Julien Green romancista, detecto ainda a trama romanesca que vem século XIX. A escrita dos nossos dias é feita para leitores preguiçosos, pouco atentos e interessados na criação das personagens que são o que de mais interessante existe no romance e mais trabalho dão na sua construção. As fastidiosas descrições paisagísticas, a lupa que vai ao ponto de realçar a nódoa, o fato e vestido dos intervenientes, todo esse mundo que abraça a realidade porque é ele mesmo real quando contado, já não existe no romance dos nossos dias. Ao escritor, muitas vezes acossado pelo editor, só interessa o número de páginas que não fatiguem o leitor, a história ordinária que entretém, o drama de amor que começa pela cama e acaba no desastre. Tudo deve ser contado conforme a linguagem falada, de ouvido a ouvido, como se houvesse sido narrado ao virar da esquina, no Chiado. A própria construção do objecto enquanto matéria de intervenção social, política e circunstancial é hoje ligeira, se possível um livro por ano, para aqueles que vivem do conta-gotas das linhas de cada página. Lida a treta, logo a enterram no fundo da estante para nunca mais ser folheada e muito menos consultada. É um sorvete que se dissolveu nas mãos. As ideias, a própria arte da escrita, a lonjura do tempo que atravessa as páginas, os meses e anos de meditação, o trabalho árduo da escrita e do pensamento, são factores que não interessam ao editor, escritor e leitor. A sociedade de consumo transformou os artistas em técnicos acossados pelo editor e desfalecidos dos ímpetos criativos e sofrimentos do homem de letras de antanho. A profundidade é uma chateza, a história bem contada um suplício, o grosso in-fólio uma estopada. 

         - Com todos os cuidados possíveis para não estragar o pouco que o Adalgur fez, depois do almoço, fui continuar o trabalho interrompido por mor das dores lombares. Consegui fazer praticamente metade da frente da casa. Nada mau para quem já só pensava em vender esta propriedade e empreender uma viagem sem paragens nem fim.