sábado, setembro 07, 2024

Sábado, 7.

É curiosa a força que o hábito impera em nós. Desde que me foi retornado o automóvel e posso tomar duche quente, ir ao supermercado, ao café, entre o passado-recente e o presente restabelecido, começou uma vida nova que me faz recear da importância da outra à míngua de tudo. Porque a experiência vivida, restaurou em mim uma espécie de resistência contra a facilidade da vida moderna que arrasta consigo a tralha da facilidade e conforto em exagero. Durante quase três semanas passei os dias num casulo-limite, que me testou e eu testei a moldura do meu existir onde a solidão foi absoluta e as fronteiras esticadas ao ponto de recear o quotidiano que agora retomei. Circunscrito às quatro paredes desta casa, apesar de cerca de um hectare de espaço circundante, no meu espírito a prisão estava demarcada e ninguém aqui aportava para me chegar alimentos ou o jornal, deixar os bons-dias ou falar do vizinho submerso pelos familiares chegados de terras de França. Certo, apareceu a Alzira de regresso do Algarve, mas ela ignorara o estado em que me encontrava. Todos os outros, distantes e próximos, não encontraram cinco minutos para visitar o ilustre solitário. Surpreendido? Nem um pouco. A construção do silêncio levo-a eu há muito tempo e cada vez mais, tomado pela distância, percebo o mundo que me rodeia. Não é que dispense quem quer que seja. Pelo contrário. Gosto de gostar, mas também aprecio a solidariedade humana que o mundo de hoje, enterrada a filosofia dos Evangelhos, reduziu a uma montanha de interesses materiais, mais aguçada entre os que crêem que entre os agnósticos. Nesses dias, aprendi a consumir menos (eu que já o faço no extremo), quando a pouco e pouco observei o frigorífico antes cheio devido à estada dos meus sobrinhos. Mas também o tempo, essa presença sem rosto nem sentimentos, foi por mim consumido q.b.. Estendeu-se, cobriu-me nos seus tentáculos, prendeu-me nos seus braços como uma aranha medonha que nos sufoca. Inicialmente dei-lhe as boas-vindas, encarei-o como Santo Agostinho, e tentei que me desse a força necessária a que nos conduzíssemos os dois em cordialidade e convívio mútuo. A primeira semana passou-se sem que tivesse sentido o seu peso enorme; depois, à medida que os dias se iam somando, comecei a ficar derreado com a sua insuportável presença. Porque o tempo nunca se consome, arrasta-nos com ele para o vazio que ele próprio cria e onde nos amarra. Tentei instalar-me num programa que era o normal – escrita, leituras, arranjo da casa, regas, pequenos trabalhos no exterior, mas qualquer coisa faltava que devia complementar o arrozal das horas: a liberdade.  A  liberdade que eu com tanto custo tinha chamado não só a cada dia, como ao resto dos meus dias. O que antes fazia com gosto, foi na reclusão um suplício porque o elemento fundamental não estava presente, não podia exercer esse recurso indispensável a todo o ser humano. Mesmo na solidão, é preciso ter por companheira a liberdade.