Quarta, 26.
Dizia-me a Alice ontem que passou o dia todo ao telefone a falar com amigas e amigos que a contactaram. Respondi que isso é sina que também a mim me toca e decerto a muitas ouras pessoas. Haver dias assim abarrotados de conversa, outros há de um silêncio para muitos aterrador, ainda que as modernas tecnologias nos dêem a liberdade de atender quem queremos e quando desejamos. Depois há os amigos da primeira linha, os posicionados logo atrás e os outros que se lembram de nós quando o rei faz anos para não referir os chatos que estão sentados à secretária a vender a multidões banha-de-cobra. Quando passo neste refúgio de silêncio, dardejado de revoadas de serenidade cristalina, densa e pura não sofro. Ou antes, como qualquer humano, de tempos a tempos, tenho precisão de ver gente, amigos chegados, sentir o furor da vida que se desagarra de cada ser, às vezes somente uma curta viagem de carro, um café vadio num local ermo ou no centro do bulício da cidade. Esses instantes repõem em mim todas as necessidades e energias do quotidiano. Logo de seguida, tem que haver um local como este onde tenho a felicidade de viver, que me acolha - centelha indispensável ao meu viver. De contrário, pânico. Desconstruo-me. Fraquejo. Nunca acreditei na família como abrigo, assim como jamais vi em alguém com muitos amigos um ser equilibrado. Lembra-me logo, entre muitos outros, Klaus Mann que tinha amigos nos quatro cantos do mundo e acabou, só, depois da Segunda Grande Guerra, num quarto de hotel na Côte D´Azur morto por carga excessiva de drogas. Ou o meu terno amigo A. C. C. que, no seguimento de uma vida de família e cinco filhos, separado, andou de mulher em mulher e pelo menos umas quatro sucederam à legitima, para concluir: “Helder, a vida dos casados é 95 por cento uma chatice.” Todavia, para me combaterem, muitas pessoas falam-me da solidão e doenças da velhice, querendo dizer que sem filhos, netos, sobrinhos estou condenado a apodrecer no mais completo abandono. Talvez isso possa vir a acontecer-me. Contudo, duas coisas eu sei: que os sucessivos anos de liberdade até à senectude, foram vividos em completa emancipação e placidez, amei quem quis e como quis, vivi anos intensos de amor límpido, desinteressado, que ainda hoje me afagam a memória quando tendo a resvalar para a tristeza. Mais: basta-me recordar o meu velho prédio da Rua de S. Marçal, ao Príncipe Real, onde habitei metade da minha vida, com quatro andares, esquerdo e direito, vizinhos que tinham sido casados, com filhos, netos, alguns com bisnetos e todos estavam sós. Quem os socorria era eu, porque era o mais novo e todos tinham confiança em mim. E a nenhum faltei, indo ao ponto de tratar da minha querida vizinha do rés-do-chão, Maria, até ao fim da sua vida. Foi enterrada aqui no cemitério de Palmela. Ela tinha um filho e três netos, mas não tinha ninguém. Portanto, estamos conversados. Pode-se morrer de desespero e solidão numa casa cheia, mas nunca se morre ou se está só quando se crê na Ressurreição, com ou sem requiens e misereres.
- O Carlos Soares telefonou-me há dias a dizer que tinha saudades minhas e gostava de almoçar comigo. Com efeito, desde que ele deixou os ateliers da Lapa e criou outro em Almada, que não nos víamos. Falamos muito ao telefone, “mas não é a mesma coisa”. Assim sendo, marquei hoje o nosso encontro na Brasileira e daí descemos o Chiado para abancarmos num restaurante que não cito o nome por ser impróprio de se estar devido ao barulho e às pessoas umas sobre as outras para não falar do preço em desacordo com o decore. Felizmente que entre nós o silêncio fica ao largo a espreitar abertas para se acomodar. Porque o meu amigo, senhor de grandes conhecimentos sobre história de arte, arquitectura, escultura e história tout court, é um diccionário que se abre ao virar de uma esquina, ao passar diante de uma igreja, rua, prédio, praça, que sei eu, porque da sua boca brotam sempre datas, nomes, dados pictóricos, grandes paragens de nariz no ar a observar detalhes de uma estátua, empena, peça perdida num varandim, numa porta, simples peanha. Grandes horas e simpáticos momentos que passaram a correr a descerem do tempo que por nós passava, apressado.