Terça, 7.
Domingo, preso ao Holter por 24 horas, naquela circunstância de o sentir aos uivos de quinze em quinze minutos, dia e noite, não quis escrever uma palavra que fosse. Em contrapartida, atirei-me ao último romance de Valter Hugo Mãe, Deus na escuridão e li metade do livro. Algo direi quando o terminar. Por agora deixo-me embalar pela história e, sobretudo, pela forma de narrar e do seu típico português.
- Ontem, portanto, fui ao cardiologista desembaraçar-me do cão que me mordeu vexes sem conta e fazer o exame Eco Transtorácico. Mais uma vez pude constatar quão a medicina desceu às cavernas fedorentas do dinheiro às carradas, depositado em sacos de serapilheira, como bacalhau apodrecido que nenhuma salgadeira ousa recuperar. O clínico mal me dirigiu palavra. Em dois tempos debitou números e posições que a funcionária despejava na folha do computador, com o aparelho apontado ao meu coração heróico que não lhe deu o prazer de ter pus suficiente que justificasse o exame. No final perguntei: “Então doutor, descobriu algum buraco?” Não respondeu. Perguntou-me se estava a tomar os medicamentos que me havia indicado, respondi que só tomei durante 15 dias o Kainever (que magia!). “Não se dá bem com ele? Pelo contrário, dou-me de tal modo bem que não quero continuar a frequentá-lo.” A assistente olhou-me e sorriu. Ele respondeu lesto estendendo-me a mão indicando-me a saída: “Faça como entender.” A consulta terminou ali, sem que eu pudesse usar o que sei sobre o meu corpo. Queria-lhe mostrar o calendário do registo das tensões e explicar-lhe que ao Mapa Holter tinha forçosamente de registar tensões mais elevadas (ele dizia 15 em média, facto eu sabia porque só ao segundo e terceiro registo a tensão se estabelece nos 14-7 e 13-5). A impressão com que fiquei, é que de quinze em quinze minutos, a clínica tinha de facturar 130 euros, e upa desaparece e entre o senhor que se segue.
Eu tinha razão. Quando recebi os dois relatórios (Mapa e Eco) verifico que tenho um coração de pedra. Mas como é de lei, do médico não se sai sem um qualquer problema que justifique a autoridade científica e o montante cobrado, assim nas conclusões do relatório, leio; “Alterações degenerativas das válvulas mitral e aórtica; insuficiência mitral ligeira; restante ecocardiograma dentro dos limites da normalidade ao nível das estruturas registadas.” E destas, conto, onze parâmetros sem mácula. Quanto as degenerescências, é normal porque não somos os mesmos no adiantado da idade. Ele não gostou que eu tivesse apostado nos medicamentos alternativos, apontando a tensão em média nos 15 graus. Assim vou continuar, sem que seja obstinado no assunto. Quando vir que os suplementos não me ajudam, entrarei sem ressaibo nos químicos.
- E contudo! Do fundo do momento chega-me a doçura dos dias, a Primavera a tombar do tempo, a encher os corações do perfume das flores, do ar rarefeito que abraça as manhãs e fica indolente pelas tardes já quentes. Há tanta vida na vida que me coube! Estou a estoirar de prazeres, de sonhos, de energia que catapulte horas e dias, nervo dimensional que não cede à derrota de me saber mortal e livre de ir ao encontro da finitude para esse lugar onde os verdadeiros problemas estão plasmados e anulam por inúteis todos os ódios e remorsos que a vida carregou no dorso implacável... (interrompido).
- Terminei logo pela manhã a razia da erva na parte da casa que dá para o caminho de terra batida. A Piedade veio aí passar a ferro a roupa da semana passada. Estive tempos infinitos a vê-la nessa operação de uma beleza sem fim que sempre me atraiu; porque se trata de um trabalho que acode à memória e junta as recordações de infância num feixe ou bouquet de segredos que guardamos só para nós, e constitui a nossa morada nos longes labirínticos tornados perto pela recordação em contágio com o absoluto.