Quinta, 27.
Voltei à piscina esta manhã, não em busca de alguma surpresa, mas para perder o peso que adquiri ontem no almoço em casa do Virgílio Domingues. Encontrámo-nos na Brasileira com a Maria Luísa que o assiste há dez anos, e dali fomos ao seu apartamento na Lapa. Antes de nos sentarmos à mesa, percorri o espaço constituído por três divisões, cozinha e um pátio à moda lisboeta que eu tanto gosto. Que conforto, que silêncio onde as sombras voluteiam e nos sentimos recuar nos anos para espaços idênticos selados pelo afecto que renasce nas memórias que se atropelam. O escultor, logo que entramos, oferece-nos uma peça sua, com cerca de meio metro, um par enamorados olhando-se pela eternidade e todas as paredes cobertas de livros e arte. Magníficas telas do seu amigo com quem partilhou atelier João Hogan e eu conheci relativamente bem, esculturas e objetos artísticos por todo o lado, do mobiliário à mistura deliciosa que ergue a identidade e traduz a personalidade que nele vive. Um desenho emoldurado atraiu a minha atenção e deixei nele o olhar, a ternura, o talento, a magia. São três traços apenas, mas com tal força, presença, arte expressiva que ficaria esquecido a tarde toda a admirar a face colhida de lado do seu amigo Hogan. Que pequena-grande obra genial! Depois sentámo-nos junto à janela larga que dá para uma espécie de largo onde não passa ninguém e os carros se alinham no espaço uns contra os outros. A cortina que traça a luz de um lado ao outro, dá ao interior claridade matizada. Faz frio na peça onde estamos, há humidade, segundo Maria Luísa. O artista tosse amiúdo, uma tosse seca, provavelmente devido ao ar que ali se respira. Acabámos o cozido à portuguesa, estamos sentados no sofá onde Virgílio passa os dias e as noites, diante do aparelho grande de televisão. Maria Luísa fala-me deste diário, não compreende por que conto tudo, incluindo as miudezas da vida. Digo-lhe que um diário é isso mesmo: um estender dos grandes e pequenos momentos da existência, um auto-retrato preciso e impreciso, capaz de deixar a marca do diarista que se expõe com liberdade como santidade e sentido impoluto dos outros. De contrário não é um diário, não é o testemunho singular de alguém que se descobre na inocência que o habita. Explico-lhe que Gide criou a personagem que gostaria de deixar, quero dizer, serviu-se do diário para fazer ficção. Já Julien Green, Ernst Junger, Matzneff, Virginia Woolf, Klaus Mann e tantos outros arriscaram desnudar-se e daí hoje a eles voltarmos para nos abastecermos da sua experiência de vida humana e redentora. Deixei o meu querido amigo por volta das quatro da tarde. Antes fui ao pequeno quintal e aí passei-lhe um raspanete por o deixar ao abandono. Uma grande palmeira, encostada ao muro que dá para o vizinho, esse bem aproveitado, a par de um canteiro de minúsculas flores brancas, sós e infelizes, pouco ou nunca vêem o rosto sereno do seu residente.
- Antes de ir ao encontro do meu amigo Virgílio, tomei um táxi. Ao chegar a Lisboa fui directo ao Instituto Gama Pinto. Queria ajustar contas com aquele rebanho de funcionários, que, depois de um ano de espera para a cirurgia à catarata, decidiu mandar-me para as calendas numa carta onde me acusa de ter faltado a uma consulta importante, dia 30 de Setembro do ano passado. Acontece que, danado, durante o fim-de-semana, numa casa cheia de papéis e livros, consegui encontrar os dois documentos dos exames realizados no hospital de S. Lazaro. Felizmente, nem todos os funcionários, são n´importe quoi. Logo a chegada dei com o rapaz da secretaria a quem me tinha queixado da balda dos colegas. Sorridente, disse-me que tinha toda a razão e que o assunto já estava solucionado e a operação marcada para dia 30 de Março. De todo o modo, tenciono enviar à Ministra da Saúde a documentação que diz muito da desorganização e falta de respeito de pessoas que deviam honrar o cargo que têm.