sábado, julho 20, 2024

Sábado, 20.

... de regresso à Pátria. Este período ocupa cerca de metade do livro e é quanto a mim a menos entusiasmante. Eu explico porquê. De resto, é o próprio autor que frisa pouco tempo depois de chegar a Águeda e ter fundado com outros socialistas os Centros Populares 25 de Abril, que os interesses partidários ultrapassam os velhos ideais coimbrões e “aquela era já a hora da luta pelo poder”. De repente, ainda a democracia não estava instalada, já a ganância, montada em ideologias malbaratadas, se impunha: PCP, COPCON, Povo-MFA, UDP, MRPP, PSD, CDS à mistura com alguns militares do 25 de Abril, enfim, a iminência de uma guerra civil. A caça ao poder transformou-se numa luta intestina onde a Democracia não cabia; o país estava dividido ao meio: o Norte conservador de direita, o Sul de esquerda revolucionaria. Afinal, num país pequeno, inculto de todos os pontos de vista, abrigado à protecção da Virgem de Fátima, do fado e do futebol, renasciam tantos partidos, tantas forças revolucionarias dispostas a impor a ditadura do proletariado, uns, o poder democrático dos trabalhadores, outros. Nesta salgueirada, agigantava-se um burguês de gema: Mário Soares. Que reinou durante anos, impondo, pragmático, a sua versão da história, levando tudo e todos à frente, fazendo inimigos por todo o lado, pondo nas chamas camaradas do primeiro dia, incompatibizando-se, inclusive, com Alegre, acabando a apoiar José Sócrates com visitas a Évora onde o “menino d´ouro” socialista estava preso por corrupção e roubos de milhões ao erário público. Manuel Alegre, foi mudando através dos tempos. Muita decepção mordeu-lhe o entusiasmo revolucionário da juventude, embora mantendo-se fiel ao ideário socialista que, pessoalmente, eu nunca soube o que era e ainda hoje não sei. Atente-se neste parágrafo que resume bem o que vai nas cabeças destes dirigentes:

“Ao propor, nas Teses de Abril, a transformação da revolução democrática, Lenine estava a privilegiar o voluntarismo e a pôr em  prática a análise marxista, segundo a qual o socialismo só poderia ser construído num país capitalista avançado e não num país atrasado e predominantemente rural, como a Rússia.”  

Ou nesta confusão tão cara aos nossos homens e mulheres de esquerda: 

“No dia seguinte à votação, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa anunciam um acordo para a realização de um referendo sobre a IVG. Decisão grave que pressupunha o recurso à democracia plebiscitária contra uma votação legitimada da Assembleia da República, pondo em causa a democracia representativa.” Cruzes! Cruzes! 

Mesmo assim, por muito que eu me esforce por compreender o que é o socialismo, esta cabeça dura não vai lá. Ainda esta que tem a ver com as célebres disputas entre bolcheviques e mencheviques: Lenine contrariava as teses de Marx sobre Feuerbach: “É o ser que determina a consciência e não esta que determina o ser.” Esclarece-nos, então, o memorialista:

“(...) Trotski, então ao lado de Martov (que havia derrotado Lenine na concepção de partido), tenha formulado a profética teoria das três substituições para criticar o “centralismo democrático” proposto por Lenine. Primeiro, o partido substitui-se à classe trabalhadora, depois o Comité Central substitui-se ao partido, finalmente, secretário-geral substitui-se a tudo e todos.” É o que se passa na Federação Russa, Na Coreia do Norte, na China discípulos de Estaline.”  

Todavia, o nosso socialismo que vergonhosamente foi inscrito na Constituição como “democracia socializante” por Melo Antunes, é bem o exemplo da confusão e trapalhada dos tempos modernos, quando os povos apenas exigem honestidade, competência e dedicação à causa de todos. Esta parte do livro é para mim a mais desinteressante por tudo o que venho expondo e pelo muito que Manuel Alegre acrescenta ao exercício da democracia em Portugal. A sua desilusão é a minha. Estou do seu lado quando afirma, por vezes naquele vocábulo tão típico da gente do Norte, “desvanecera-se o sonho revolucionário (ou reformista) de uma democracia avançada a caminho do socialismo (qual? pergunto eu), com ou sem liberdade, dependendo de quem saísse vencedor do velho combate iniciado há muitos anos num congresso do Partido Social-democrata russo”. Acredito que muito da filosofia marxista tenha sido adulterada, por mim prefiro o Novo Testamento onde o velho Marx foi beber muito das suas teorias. Do ponto de vista nacional, Alegre, refugiando-se na poesia, desabafa com mágoa: “A Democracia enferma de falta de transparência, de escassez de participação, de ausência de alternativas claras e de projectos mobilizadores, faz com que os grandes debates e combates democráticos sejam substituídos pela intriga dentro de cada partido. A luta pelo poder interno sobrepõe-se à luta pelo poder do país.” Pois é, caro Amigo, quando as ambições partidárias dominam o país real, e a educação democrática subestima o indivíduo, cenas como esta descritas no seu livro, não ajudam absolutamente nada: 

         “Dirigi-me ao declamador e perguntei se aquilo era comigo.

         - É, sim senhor, cambada de traidores. 

         Enfiei-lhe uma bofetada que o virou de cangalho. Grande burburinho. Um dos do grupo começou a acusar-me de ter feito algo de muito grave. 

         - O senhor bateu num deficiente. 

         - E o senhor também é? 

         - Eu sou advogado respondeu, fazendo peito.

         - Então também leva. 

         Atirei-me a ele. Abrantes Serra interveio.”  (Cena passada num comboio para Coimbra.)

         Por tudo quanto acabo de discorrer neste longo artigo sobre as Memórias Minhas de Manuel Alegre, construído decerto ao longo de muitos anos que se percebe pela construção do mesmo, por algum descuido para mim sadio, pela franqueza e pelo registo de uma longa viagem pessoal onde todos embarcamos, nem sempre a seu lado, mas convencidos que afinal de contas valeu a pena. Somos uma República Democrática. Até quando?