quarta-feira, julho 31, 2024

Quarta, 31.

A Venezuela está a ferro e fogo. A oposição não aceita os resultados eleitorais e fala que conquistou 70 por cento dos votos e por isso devia governar. Depois do reinado de Maduro já lá vão dez anos, o país caiu num desastre económico, social e político assustador. Nem o facto de ser um dos maiores produtores de petróleo, consegue levar ao povo a uma vida decente. Há já pelo menos sete mortos. Todavia, o PCP, Rússia, e China apressaram-se a festejar a vitória do ditador. O PCP já está limitado a um deputado na Assembleia, com estas atitudes vai ficar reduzido a um grupo de marginais da política e sonhadores do marxismo-leninismo. 

         - Li as primeiras cem páginas do Diário de Mário Cláudio que comprei sexta-feira passada quando entrei em casa. Que dizer? É pobre, é breve, esgota-se no apontamento feito à pressa, por vezes embrulhado num laçarote desajustado. Bom. São apenas cem páginas e a vida do escritor mal começou. Está lá tudo, mas falta-lhe sempre o essencial que o diarista cobre com prosa rechonchuda imprópria do género literário. Não obstante, estes dois apontamentos. De Pablo Casals: “Só os medíocres são impacientes; os grandes podem esperar.” O autor está de férias com o namorado na Praia da Árvore e ao vê-lo deitado na areia, ocorre-lhe: “Saberás que ainda és jovem quando, perante um livro, te sentirás incapaz de interromper a leitura.” 

         - As forças anti-democráticas que se constituem num bloco, puseram os seus terroristas a dinamitar vias ferroviárias, Internet, redes telefónicas fixas, portáveis num ataque sem precedentes para estragar a abertura do Jogos Olímpicos de Paris. Não o conseguiram. Eles aí estão em esplendor e pena é que aquele desportista de sobrancelhas negras aparadas, não tenha conseguido fazer melhor na primeira prova de natação. O rapaz vai longe. Assim como aquele que não passou da primeira prova de skate, miúdo com cabeça tronco e membros e... ideias.    

         - Alinho estas linhas no velho e (pouco) saudoso Centro Comercial Amoreiras. Há muitos anos que não punha aqui os pés e vim porque tenho de passar no exame para renovação da carta de condução. Vivi aqui perto mais de meia vida e era aqui que vinha fazer compras, tomar café, ao cinema, à livraria, encontra-me com amigos. Pouco resta desse tempo e a balbúrdia recresceu a um ponto que se tornou insuportável. Ao olhar este mundo de gulosos, ansiosos, convencidos, pelintras e insatisfeitos, penso no meu lugar onde no silêncio me confronto comigo e com a divina presença, como dizia Pascal, está por todo o lado mesmo nos buracos da casa. 


terça-feira, julho 30, 2024

Terça, 30.

Adoro o silêncio não só porque é nele que Deus vive, mas porque a consagração da vida faz-se com ele. Todas as manhãs, quando abro a janela do quarto e olho a presença das árvores e tudo o que me cerca, sinto-me um privilegiado a admirar a sublimidade que tenho diante dos olhos à mercê de todas as jubilações e acção de graças. As auroras acordam frescas, com uma leve transpiração de sensualidade a banhar-lhes a cor, o jeito de se entregarem à magia do dia que rebentará daí a instantes. O Sol ainda dorme nas costas do Universo, entorpecido na fúria que queima e incendeia. A hora que encontro quando escancaro a porta da cozinha, é a hora-esperança renascida das cinzas da noite. De então abro de par em par todas as janelas e portas do rés-do-chão para que a cócega insinuante e fresca da manhã me invada, me acaricie, me envolva na ternura do princípio do tempo. Tempo esse na chance da chegada a este paraíso, o deslumbre da terra abandonada, coberta de vegetação alta que não deixava ver o chão, a casa arruinada cheia de ratazanas, os invernos alastrados como gargantas abertas ao céu presente na limpidez de cada momento, timbre inaudível, segredo que não se descobre à realidade... Os amores aqui nascidos e enterrados, as noites de luzes abertas no momento do reencontro, fugidio tantas vezes, com um rasto de mágoa, um sorriso triste, uma desistência que a solidão aproveitou. Tantas vozes aqui se reuniram para romper as tardes à lareira, ouvindo o murmúrio da lenha, o silvo agudo do pássaro ao telhado, serões falados, discutidos, salmodiados de preces que não chegaram ao deus do amor. E sempre, por sobre tudo, este doce e compassivo silêncio que tudo apazigua, absorve, fortalece e dá sentido aos dias que enchem uma vida.


segunda-feira, julho 29, 2024

Segunda, 29.

Não tenho a certeza que seja a senhora Kamala Harris, eleita à última hora do xadrez político americano, venha a ser a Presidente dos EUA. Os jogos de poder são muitos, estão embrulhados em interesses vários, e a política está hoje irrespirável por lado. A técnica de Trump é a que prevalece, porque se afirma mais solta, menos conciliadora (aparentemente) com o status quo. Trump não tem princípios a defender, é boçal à maneira de milhões se seres humanos onde a cultura nunca entrou, e por isso facilmente levados pelas “verdades” dele e do seu arguto segundo. Por outro lado, leva a vantagem comummente aceite, de que houve intervenção divina no atentado (misterioso, politicamente) contra ele. Mais: o povo americano, católico à maneira dos infelizes, aceita que este desvio da bala é sinal que Deus o escolheu para dirigir os destinos da imensa nação americana. Vou citar Cícero que de lá longe, dos anos Quarenta, quando ainda o povo romano não enxergava o Deus único, convivendo com centenas de deuses que acudiam nas mais diversas situações, pois tinha um deus para tudo, por exemplo para os dedos dos pés, a hora do dia e por aí adiante e ainda S. Paulo não havia chegado com a Palavra dos Evangelhos, nos pode, contudo, esclarecer a nós dois mil séculos depois. 

“Que autoridade pode arrogar-se essa espécie de delírio a que chamais “divino”, que dá a um louco a capacidade de discernir o que um sábio não consegue, que dá facilidades divinas a quem perdeu as humanas.” Interrogava-se Marco Cícero algures nos seus diálogos acerca da praga que assolou por muitos anos Roma – augúrios, adivinhos, profetas  e quejandos.  

         - O que se temia já está no terreno: o confronto entre Israel e o Hezbollah. O ataque de sábado sobre os Montes Golã, matou pelo menos uma dúzia de crianças que jogavam à bola num campo aberto. Dizem os entendidos que este foi o pior ataque contra civis israelitas. Netanyahu promete  vigorosa resposta. E assim passam os dias e daqui a nada um ano.

          O querido camarada de José Sócrates, ditador de esquerda à frente da Venezuela, contra todas as expectativas da nossa imprensa falada e escrita, que durante a campanha prometeu um banho de sangue se não ganhasse as eleições, acaba de cantar vitória com mais de 50 por cento de votos. A oposição, como manda a regra, contesta. Fala de falcatruas. O nosso Bugalho está calado, não pôde ir conhecer o país porque o ditador o impediu, a ele e mais uns quantos do parlamentares europeus, de entrar no pais. A vedeta ululou. 

         - Não sei como nem porquê, logo pela manhã, antes de a Piedade chegar, estando o tempo mais para chuva, decidi ir cortar a erva que tinha crescido imenso em frente à casa. É a quarta vez este ano. Não imaginava ter tanta força. Sobretudo devido ao meu estado depressivo, com a ausência do romance, única razão de todos os entusiasmos. Que mais? Fui à natação. Não havia uma só alma naquele tanque azulado, Só eu nadei durante uma hora sob o olhar do nadador-salvador, aquele que se rapou da cabeça aos pés e não deixou um único pelinho para amostra no corpo banal. Se ele esteve de olho em mim, estive eu depois no balneário de olho nele – não fosse o diabo tecê-las... Olé! 


sábado, julho 27, 2024

Sábado, 27.

Na pressa em que me encontro, deixo este fogaz apontamento sobre a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Estive a ver até ao fecho da emissão com prazer não só pela originalidade, como pelo encanto de contemplar Paris a minha segunda pátria. Apesar da chuva com que ninguém contava, o ritmo imposto pela beleza, bom gosto, ritmo, liberdade e sedução surpreendeu e colocou o país no topo da criação e do talento.  É esta França que venero – a terra dos intelectuais, dos criativos, dos pensadores, dos cientistas. Embora saiba que o povo desceu imenso no aprumo pessoal e no orgulho de haver sido o símbolo cultural de todo o século XIX até ao início da Segunda Grande Guerra, continuo a apostar no conhecimento da plêiade de mulheres e homens que lutam pelo pensamento e inconformismo que a pobreza e vulgaridade dos políticos impõem.  



sexta-feira, julho 26, 2024

Sexta, 26.

É vergonhoso o que se passou no Congresso, com os congressistas, de pé, a aplaudirem o miserável discurso carregado de ódio e desprezo pelo sacrificado povo palestiniano de Netanyahu. A hipocrisia da América é insuportável. De um lado, apelam ao fim da guerra; do outro, contribuem para a sua perpetuação. 

         - “Ela não era boa aluna no sentido de ser coiso, percebes?”  – conversa no Fertagus entre duas mulheres. 

         - Enfim, uma página cumprida no romance esta manhã na Brasileira. Não sei se ficará, mas já foi qualquer coisa tendo em vista a secura destes últimos tempos. Antes a morte. 

         - A pouco e pouco vou preparando a minha saída de cena. Ontem, dei o primeiro passo. 

         - A grande figura da Igreja, Abbé Pierre, querida dos franceses, é acusada de abusos sexuais durante anos por várias mulheres, incluindo uma menor de idade. Esta deixou-me estupefacto. 

         - Não posso entrar na Fnac que não compre um livro. Desta vez o grosso volume (500 páginas) do diário de Mário Cláudio. Desconhecia que o escritor tivesse um registo quotidiano. Atendendo à personagem, é de me afoitar.


quinta-feira, julho 25, 2024

Quinta, 25.

Mais uma cidade espanhola reclama de excesso de turistas: Barcelona. “Xó daqui para fora!”, gritam nas ruas. Depois das Canárias, do Porto, e de tantos outros países que sacodem das ruas a multidão que viaja como gado, eis que o investimento dourado dos socialistas de Costa está transformado numa praga que ofende e empobrece e desloca das suas casas os pobres nativos. Só em Barcelona 12 milhões de almas despejadas na cidade ultimamente, andaram a vaguear suspensas do turismo de massa que não traz cultura, riqueza, troca de conhecimentos, comunhão entre povos, mas desgraça, atropelo, desenraizamento e abandono de vidas dos que sem desejarem têm à sua porta, nos seus cafés e restaurantes, nas praias e transportes públicos, um aluvião de gente apatetada que olha sem ver, observa sem a mínima curiosidade, goza tão só do seu próprio ruído, como do sol de perna aberta nas esplanadas, nos passeios e bancos dos jardins. Não vieram aqui, passaram simplesmente. 

         - Sempre que embarco no Fertagus no terminal Roma/Areiro, assisto a um empregado que no último vagão, depois de bloquear as portas, tranca-se na cabine e o comboio entra imediatamente em andamento. Não sei porquê, dou comigo a pensar se as modernas tecnologias permitem que o trem possa movimentar-se conduzido pela traseira, pois nunca vi o maquinista quando chega ao términos passar para a cabine da frente. Ontem tirei-me de cuidados e fui pôr a questão à simpática funcionária. Ela explicou-me que a locomotiva era manobrada pelo maquinista no sentido da partida e o facto de ela se enfiar na cabina de trás vinha da Covid; não obstante ela também dava conhecimento ao condutor de certos aspectos da linha férrea. Pedi-lhe desculpa pela minha ignorância e ela: “Pelo contrário. A mim admira-me a sua curiosidade.” Toma e embrulha, rapaz. 

         - Afinal tanta coisa “temos o maior jogador do mundo”, “como Ronaldo não há igual” “Portugal é Ronaldo” e outras balelas que inundam o orgulho balofo nacional, e vai-se a ver, o maganão nem no ranking dos 10 desportistas maiores de todo mundo está. Cristiano Ronaldo fica mesmo um ponto abaixo de Messi o seu rival. Para um arrogante e convencido como ele, é uma verdadeira afronta que os milhões não podem redimir. 


quarta-feira, julho 24, 2024

Quarta, 24.

Depois de ter estado com o mestre Castilho na Brasileira, inteirando-me do que lhe tinha acontecido para ter sido internado no hospital seis dias (princípio de AVC) felizmente fora de perigo, fui comer ao Corte Inglês e de seguida, no espaço climatizado e sem ninguém, entrei no romance. Verdadeiro desastre. As palavras pareciam enroladas no meu cérebro, cada uma que caía na página do computador era logo rejeitada para dar lugar a outra que tinha o mesmo destino. Foi hora e meia deste desgaste nervoso, desta aflição, desta desistência de mim. Engana-se quem pensa que ça coule de source .

         - Ontem ouvindo a viúva do BE, dei comigo a pensar quanto a esquerda nos engana. Porque as bases políticas onde ela assenta a sua ideologia, são um pouco como aquelas que se outorgam à religião. Eu explico. Qualquer pessoa normal, equilibrada, civicamente educada, não suporta a pobreza, ver o seu semelhante em planos de inferioridade, vivendo no limite da decência. Não é preciso ser-se de esquerda – basta ser-se humano. Como não acho ser necessário ser-se católico para estender a mão a quem necessita. Os fundamentos da religião inscritos nos Evangelhos, podem ser praticados por aquela ou aquele ateu ou agnóstico. – basta ser-se humano. Galopar a insatisfação e a miséria como forma de fazer política é desonesto. Tenho dito. 

         - A propósito deste uso “esquerda, direita, volver” tão ao gosto da tropa. Aí pelo ano de 45, Cícero anotava nos textos filosóficos ao falar de Homero quando Ájax se queixou a Aquiles da brutalidade dos Troianos: “Júpiter dá-lhes da direita, relâmpagos favoráveis.”  A partir deste verso, reflete “(...) para nós são favoráveis os sinais vindos da esquerda para os Gregos e os Bárbaros são melhores os da direita. Claro que eu não ignoro que nós chamamos às vezes “da esquerda” os sinais favoráveis mesmo vindos da direita; o certo é que entre nós eles são chamados “da esquerda” e, entre os estrangeiros, “da direita” aos que na maioria dos casos se lhes afigurava ser mais favoráveis.” (p. 417). Um pormenor de somenos importância: estamos no séc. XXI. 

         - Escrevo estas linhas na cozinha com o ar condicionado ligado. O frio que sai do aparelho, permite-me estar calmo e atinado. Para amanhã prometem-nos baixa de temperatura.   


terça-feira, julho 23, 2024

Terça, 23.

Joe Biden renunciou a recandidatar-se à presidência dos EUA. Passou a palavra à sua vice, Kamala Harris, uma fro-indiana nascida na América. Eu não apreciei o trabalho de Biden, particularmente, a sua debandada do Afeganistão, os cargos atribuídos aos amigos e camaradas, o seu apoio incondicional a Netanyahu. Mas tinha consideração pela sua luta não só contra a velhice, mas também contra o mundo de hoje que expulsa da vida os que tiveram a sorte de chegar a senectude. A política ceifa tudo, destrói o passado e o futuro, chacina sem dó nem piedade, não conhece amigos, abandona e faz descer do pedestal quem a ela deu os mais profícuos dias, odeia quem deixou de interessar na pressa de pôr no poder qualquer cretino que melhor distribua o muito que o tacho tem para dar. O que fizeram a Biden foi a humilhação mais hedionda que a América alguma vez fez a um Presidente. Eu sou dos que, não obstante a sua fragilidade, pensa que ele acabaria por ganhar ao idiota Trump. 

         - Se as pessoas imaginassem o que esta cabeça magica sem descanso, fechavam-me no manicómio para o resto dos meus dias. 

         - O caramanchão de hortências em frente à casa, nestes derradeiros dias, foi barbaramente atingido pelo calor excessivo. A sensibilidade das flores não aguenta o Sol vertical sobre o seu dorso sensível. Ainda que dezenas de novas bolas nasçam, não são suficientes para cobrir as folhas castanhas das outras. Também outro fenómeno se passa com os acantos. Mesmo na sombra, regados todos os dias, já começaram a murchar apodrecendo as suas vistosas folhas, mas ficando os caules verticais cheios de semente que, como todos os anos, caiem à terra e multiplicam-se em beleza e exuberância no Inverno. 

         - Fui esta manhã a uma povoação aqui perto chamada Cabanas. Conheço-a há muitos anos, mas deixei de a frequentar e quando por lá passo, uma vez por ano, para levar o carro à inspecção mais adiante, é de corrida. Acontece que o meu canalizador me deu o nome do estabelecimento onde poderia comprar um novo esquentador que substitua o heróico Vulcano que faleceu ao fim de 25 anos de labor. Está tudo tão mudado, o movimento é tão intenso, carros por todo o lado, ruas que desapareceram na balbúrdia em que se transformou uma aldeia antes pacata e agradável. Atravessei-a, para cima e para baixo várias vezes, sem me conseguir orientar e, portanto, a casa era-me familiar. Enfim, vejo-a do lado esquerdo, mas não avisto espaço para estacionar o carro. Ficou o Skoda de rabo alçado num qualquer sítio e é a penates que vou andando até ao estabelecimento. Em boa hora. Para aqueles amigos que me costumam rogar pragas porque dizem que compro electrodomésticos mais caros no C.I., tenho a dizer que desta vez têm razão. O mesmo aparelho no C.I. custa mais 236 euros! Portanto...  

         - Fui à natação. Tenho a impressão que este ano não vou poder mergulhar na cá de casa. Há tantos condicionantes que me vejo forçado a desistir do projecto de pôr novos skimers. 


segunda-feira, julho 22, 2024

Segunda, 22.

A vida chama-nos de tanto lado, do interior de nós como do que nos circunda – sombras, círculos de flaches em chama, vozes melodiosas ou duras como pedras, olhares que raspam os nossos e nos encandeiam, imagens, murmúrios, coisas segredadas, quase inaudíveis, corpos brancos de cera alva, êxtases perdidos no espaço, e toda esta florescência que traz em si o uivo da dor que nos expõe ao inacessível... 

         - Fui a Lisboa almoçar com o Paulo Santos. Encontro marcado na brasileira sob calor insuportável, sem o bê-á-bá dos velhinhos tertulianos. Logo ali trocámos livros: eu ofereci-lhe o número 25 de Os Fragmentos do Silêncio ilustrados pelo Carlos Rocha Pinto; ele a sua última obra apresentada quinta-feira no palácio de Oeiras, com exposição do autarca, que logo no início disse não saber quem o meu amigo era, nem que obra era aquela que falava de um pintor que ele, naturalmente, desconhecia: Claude-Joseph Vernet. 

         - Descemos ao Cais do Sodré a pé por um mundo onde eu há muito não punha o olhar, transformado numa zona para turista, tudo muito rasca, pobrezinha, como pobres são os turistas que nos visitam. Toda a cidade é a imagem de António Costa que no turismo apostou todas as moedas. O resultado é a revolta que cresce por todo o lado; os portugueses depauperam, as “contas estão certas” (dizem), mas os nacionais vêem cidades e vilas transformadas em caixotes de lixo, ruas entupidas, lagartixas ao sol nas esplanadas, um café e um pastel de nata por almoço e quem sabe por jantar, a descaracterização a inundar pessoas e a malha urbana. 

         - A mensagem gay está por todo o lado, tomou conta dos locais, presta-se a todo o espectáculo degradante em nome da liberdade de género, como se para abafar a costeleta fosse preciso tanto... Bref. Assim, a rua principal interior do Cais do Sodré, onde eu antes, deixando o jornal, ia noite dentro, em grupo com os meus colegas aos bares de putedo que ali se somavam uns aos outros. Hoje a fauna é outra, a rua está pintada de cor-de-rosa, os pares desfilam, de leque, vistosas e indisciplinadas, distribuindo gritinhos suaves entre eles. O Paulo quis oferecer-me o repasto e eu, educado como sou, escolhi o prato mais barato e ainda assim pela módica quantia de 20 euros! Os empregados vêm da Tailândia e não sabem uma palavra de português. Estamos tão saloios, tão ridículos, tão convencidos de tudo o que nos reduz a zero!

         - Ah! Os barões da CP estão de novo em greve com os consequentes transtornos para os passageiros. As greves antes eram o último recurso, hoje são o primeiro; as ordens emanam dos sindicados que cumprem as estratégias dos partidos.  O abuso que prejudica milhares e milhares de pessoas devia ser revisto. 


sábado, julho 20, 2024

Sábado, 20.

... de regresso à Pátria. Este período ocupa cerca de metade do livro e é quanto a mim a menos entusiasmante. Eu explico porquê. De resto, é o próprio autor que frisa pouco tempo depois de chegar a Águeda e ter fundado com outros socialistas os Centros Populares 25 de Abril, que os interesses partidários ultrapassam os velhos ideais coimbrões e “aquela era já a hora da luta pelo poder”. De repente, ainda a democracia não estava instalada, já a ganância, montada em ideologias malbaratadas, se impunha: PCP, COPCON, Povo-MFA, UDP, MRPP, PSD, CDS à mistura com alguns militares do 25 de Abril, enfim, a iminência de uma guerra civil. A caça ao poder transformou-se numa luta intestina onde a Democracia não cabia; o país estava dividido ao meio: o Norte conservador de direita, o Sul de esquerda revolucionaria. Afinal, num país pequeno, inculto de todos os pontos de vista, abrigado à protecção da Virgem de Fátima, do fado e do futebol, renasciam tantos partidos, tantas forças revolucionarias dispostas a impor a ditadura do proletariado, uns, o poder democrático dos trabalhadores, outros. Nesta salgueirada, agigantava-se um burguês de gema: Mário Soares. Que reinou durante anos, impondo, pragmático, a sua versão da história, levando tudo e todos à frente, fazendo inimigos por todo o lado, pondo nas chamas camaradas do primeiro dia, incompatibizando-se, inclusive, com Alegre, acabando a apoiar José Sócrates com visitas a Évora onde o “menino d´ouro” socialista estava preso por corrupção e roubos de milhões ao erário público. Manuel Alegre, foi mudando através dos tempos. Muita decepção mordeu-lhe o entusiasmo revolucionário da juventude, embora mantendo-se fiel ao ideário socialista que, pessoalmente, eu nunca soube o que era e ainda hoje não sei. Atente-se neste parágrafo que resume bem o que vai nas cabeças destes dirigentes:

“Ao propor, nas Teses de Abril, a transformação da revolução democrática, Lenine estava a privilegiar o voluntarismo e a pôr em  prática a análise marxista, segundo a qual o socialismo só poderia ser construído num país capitalista avançado e não num país atrasado e predominantemente rural, como a Rússia.”  

Ou nesta confusão tão cara aos nossos homens e mulheres de esquerda: 

“No dia seguinte à votação, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa anunciam um acordo para a realização de um referendo sobre a IVG. Decisão grave que pressupunha o recurso à democracia plebiscitária contra uma votação legitimada da Assembleia da República, pondo em causa a democracia representativa.” Cruzes! Cruzes! 

Mesmo assim, por muito que eu me esforce por compreender o que é o socialismo, esta cabeça dura não vai lá. Ainda esta que tem a ver com as célebres disputas entre bolcheviques e mencheviques: Lenine contrariava as teses de Marx sobre Feuerbach: “É o ser que determina a consciência e não esta que determina o ser.” Esclarece-nos, então, o memorialista:

“(...) Trotski, então ao lado de Martov (que havia derrotado Lenine na concepção de partido), tenha formulado a profética teoria das três substituições para criticar o “centralismo democrático” proposto por Lenine. Primeiro, o partido substitui-se à classe trabalhadora, depois o Comité Central substitui-se ao partido, finalmente, secretário-geral substitui-se a tudo e todos.” É o que se passa na Federação Russa, Na Coreia do Norte, na China discípulos de Estaline.”  

Todavia, o nosso socialismo que vergonhosamente foi inscrito na Constituição como “democracia socializante” por Melo Antunes, é bem o exemplo da confusão e trapalhada dos tempos modernos, quando os povos apenas exigem honestidade, competência e dedicação à causa de todos. Esta parte do livro é para mim a mais desinteressante por tudo o que venho expondo e pelo muito que Manuel Alegre acrescenta ao exercício da democracia em Portugal. A sua desilusão é a minha. Estou do seu lado quando afirma, por vezes naquele vocábulo tão típico da gente do Norte, “desvanecera-se o sonho revolucionário (ou reformista) de uma democracia avançada a caminho do socialismo (qual? pergunto eu), com ou sem liberdade, dependendo de quem saísse vencedor do velho combate iniciado há muitos anos num congresso do Partido Social-democrata russo”. Acredito que muito da filosofia marxista tenha sido adulterada, por mim prefiro o Novo Testamento onde o velho Marx foi beber muito das suas teorias. Do ponto de vista nacional, Alegre, refugiando-se na poesia, desabafa com mágoa: “A Democracia enferma de falta de transparência, de escassez de participação, de ausência de alternativas claras e de projectos mobilizadores, faz com que os grandes debates e combates democráticos sejam substituídos pela intriga dentro de cada partido. A luta pelo poder interno sobrepõe-se à luta pelo poder do país.” Pois é, caro Amigo, quando as ambições partidárias dominam o país real, e a educação democrática subestima o indivíduo, cenas como esta descritas no seu livro, não ajudam absolutamente nada: 

         “Dirigi-me ao declamador e perguntei se aquilo era comigo.

         - É, sim senhor, cambada de traidores. 

         Enfiei-lhe uma bofetada que o virou de cangalho. Grande burburinho. Um dos do grupo começou a acusar-me de ter feito algo de muito grave. 

         - O senhor bateu num deficiente. 

         - E o senhor também é? 

         - Eu sou advogado respondeu, fazendo peito.

         - Então também leva. 

         Atirei-me a ele. Abrantes Serra interveio.”  (Cena passada num comboio para Coimbra.)

         Por tudo quanto acabo de discorrer neste longo artigo sobre as Memórias Minhas de Manuel Alegre, construído decerto ao longo de muitos anos que se percebe pela construção do mesmo, por algum descuido para mim sadio, pela franqueza e pelo registo de uma longa viagem pessoal onde todos embarcamos, nem sempre a seu lado, mas convencidos que afinal de contas valeu a pena. Somos uma República Democrática. Até quando? 



quinta-feira, julho 18, 2024

Quinta, 18.

... o exílio do nosso poeta não digo comunista, mas inscrito no PCP, talvez porque essa organização era na clandestinidade o padrão principal de relevo, de tenacidade e de perseverança contra o regime autoritário e humilhante de António Salazar, tivesse levado naturalmente o autor para as margens sócio-políticas em que nunca se sentiu confortável. Alegre amava acima de tudo a liberdade, havia nele uma pulsão de generosidade que se estende pelas páginas das suas memórias e continua em certo sentido as vivências familiares. Depois, penso, como todas as sociedades fechadas, secretas, os seus simpatizantes e colaboradores, encontram nelas o afago, a segurança, o timbre epopeico que faz da vida uma sedutora aventura em prol de uma fantasia que a realidade exposta dos governos comunistas representa. Ambos os regimes, o fascista e comunista, exprimem o domínio do Estado e o desprezo pelo cidadão enquanto expressão individual do ser, em importância pelo colectivo que é muito mais fácil de dominar que o indivíduo isolado que tem em si a força da solidão e independência. Manuel Alegre deixa o país quando é informado de que a PIDE o procura. Antes porém, faz briosamente a tropa nas ex-colónias portuguesas, enfrenta a morte, participa em inúmeras reuniões secretas, conhece gente a viver na clandestinidade, é ajudado pelos membros do Partido, e, sobre tanta agitação e doenças pelo meio, prossegue os estudos universitários, casa-se, escreve poesia, edita clandestinamente, conspira, participa em comícios onde é orador, incendeia a sua existência do calor constante da embriaguez. Se há vida vivida, é a dele. Ao morrer pode dizer como fez o seu amigo Pablo Neruda “confesso que vivi”, mas do “camarada Ricardo”, em verdade, nunca lhe vestiu a pele. É desmobilizado para ser preso pela segunda vez pela PIDE. Desse período nascem poemas que nunca morreram: “A Praça da Canção” (quem não se lembra!), “Rosas Vermelhas”, escreve cartas como quem mantém um diário. Tinha 27 empolgantes anos e uma vida dura de combatente pela liberdade. Libertado, regressa a Coimbra. Mas a cidade estava outra, como outros eram os estudantes, a Academia, as ruas e cafés, os teatros e cinemas. A festa tinha murchado, já não havia a euforia da sua juventude, “falava-se mais baixo, quem se sentava à mesa do café olhava para o lado desconfiado”, mas “as raparigas já podiam entrar nas repúblicas”. Pouco tempo depois, faz uma longa viagem em fuga para Paris onde conhece Álvaro Cunhal e outros nomes sonantes da esquerda portuguesa. Vai à Rússia, participa activamente na Frente Patriótica. Narra a forma como o “general sem medo” é apanhado nas malhas da PIDE e atraído a Badajoz onde é assassinado por Rosa Cavaco. É, contudo, em Argel que passa a maior parte de refugiado, à Frente da Voz de Portugal. Com ele muitos nomes conhecidos do reviralho. As coisas complicam-se quando se dá a ocupação militar da Checoslováquia pela União Soviética. Aos microfones da Rádio Liberdade condena a invasão. “Dez  anos com entusiasmos, crenças e descrenças, querelas de exílio, rupturas irremediáveis como a que se seguiu à ocupação da Checoslováquia, pela tropas do Pacto de Varsóvia”, lamenta-se. Até que Salazar cai da cadeira, e a esperança toma altura. Altos dirigentes da esquerda estavam em Paris a pensar uma estratégia pós-Salazar quando a notícia desagua. O nome de Mário Soares deportado em São Tomé, aparece. Cunhal estava sempre omnipresente. Não resisto a transcrever este bocado de prosa por dizer muito do chefe do PCP e do socialista que viria a ser Manuel Alegre.  Ambos encontram-se no café Sarah Bernhardt, em Paris. A dada altura, Alegre puxa de um cigarro que acende com isqueiro de Cunhal e inadvertidamente leva-o ao bolso. Acode o dirigente comunista: “Esse não, foi o último presente do meu pai.” Comentário de poeta: “Tinha lágrimas nos olhos, nunca mais esqueci, porque me parecia impossível que aquele homem pudesse chorar.” Falei do exílio? Talvez. Mas como remate não resisto a falar do exílio em que nos encontramos cada um consigo, nas longas horas de excitações, combates, desafios. Manuel Alegre regressou à Pátria logo que pôde. A páginas 193, leio este desabafo: “Pelas circunstâncias da minha vida, fui sempre um escritor solitário. Nunca pertenci a nenhum grupo, a nenhuma corrente, a nenhum café literário. Estive dentro do poder político, mas nunca do literário, que é o mais sectário e totalitário de todos. Quase não pude partilhar o que escrevia. A maior parte das vezes, tal como na cela da PIDE, em Luanda, dizia em voz alta, para mim mesmo.” Arredado do país mais de dez anos, Manuel Alegre vai retomar a política, ser dirigente, deputado, candidato à presidência da República, mas desta vez em democracia. 

O 25 de Abril trouxe-o como a muitos outros... 


quarta-feira, julho 17, 2024

Quarta, 17.

Vou atirar para trás das costas o rumorejo inútil da política e a fermentação do ódio que se estende por todo o lado, para me ocupar, ironia do destino, de um político e... do PS: Manuel Alegre e o seu livro de lembranças Memórias Minhas. Há nestas recordações, três períodos que eu gostava de separar para melhor compreender e dissecar: a adolescência, o exílio e o retorno com o 25 de Abril incluído à vida apunhalada pelas costas que é próprio da política estragada dos nossos tempos. Pelo meio, o Poeta que Alegre sempre quis ser e foi e do melhor que o nosso meio intelectual possui, fui eu enquanto leitor que lê e relê com paixão os poemas que conheceu na ilegalidade, quando os comprava à socapa numa papelaria do Largo do Rato, em Lisboa, para logo, na ânsia de os devorar, se ir sentar no café Danone com o Alberto seu vizinho e amigo da Rua do Salitre.  

A adolescência. O grosso livro de 400 páginas abre com a luz de um mundo feliz, que a criança e o adolescente que Manuel Alegre foi, a inundar-lhe a existência. Não sendo rico, possui todavia uma certa tradição aristocrática (“Sou um republicano com uma costela sentimental monárquica.” (p. 27) que ainda hoje e talvez malgré lui, se manifesta no seu modo de estar e agir. A juventude é passada entre Coimbra onde estudou e Águeda de onde desce à cidade dos estudantes para aí conhecer ou selar aquilo que avós e pai viveram e lhe transmitiram. Alegre deve a Coimbra tudo o que mais tarde seria o seu suporte ideológico, a sua manta de agasalho, o seu pendor um pouco arruaça, que até fica bem num adolescente demasiado vinculado ao padrão católico, apostólico, romano da família, os amigos que o acompanham ou acompanharam no decurso de uma existência trepidante e repleta de tudo incluindo desgraças. Todas as aventuras e particularmente as amorosas, desaguam no adolescente que obcecadamente a cada minuto dos seus dias quer encher o coração da fermentação que a vida por ser desassossegada o alucina. As ruas e praças de Coimbra, cafés e universidades, qualquer lugar onde palpite o rumor, a vociferação contra o Estado Novo, ei-lo a marcar a cadência dos silêncios, das assembleias de estudantes, dilatórias, plenários, enfim, agitação que faça frente ao insuportável viver de Salazar. Há nele uma intrínseca liberdade de agir, uma certa alegria que o tumulto exerce sobre a sua personalidade vibrante que o faz estar sempre em movimento até altas horas da noite. Por essa altura, pertence ao PCP, e esse facto tolda-lhe em certo sentido não só a mente, como a palavra que transporta para o poema lhe parece mais acutilante que os temores dos camaradas amarrados a ideologias ferozes, que cedo compreendeu nada terem a ver com a sua forma de ser, estar, viver a liberdade. 

Curiosamente, eu que muitos anos depois chego a Coimbra, vejo-me em concatenação com o memorialista a folhear a minha vida através dos sítios, dos movimentos, da loucura, da atmosfera que também vivi. São-me familiares os nomes dos cafés – o Mandarim, o café Montanha, o Piolho, o Madeira onde eu ia todos os dias jogar bilhar depois do jantar. Este café fora mais tarde comprado pelo Manel que era prefeito no Colégio Camões e dizíamos nós alunos um pide entre aluviões de rapazes que o frequentavam. Na rua com o mesmo nome, morava numa casa logo à entrada, à esquerda, Miguel Torga, o colégio fechava a correnteza de vivendas lá no fundo, com a estátua do poeta que lhe deu nome à entrada. O Terreiro da Erva, atrás do Diário de Coimbra, onde aos domingos entrei uma ou outra vez, e onde pela primeira vez vi uma mulher nua, pois aquela zona era um espaço de Sodoma e Gomorra e prostituição de terrível encanto.  Com colegas, chegávamos excitadíssimos, subíamos ao primeiro andar, observávamos as fotos das raparigas e cada um desaparecia por algum tempo no nevoeiro intenso, abafado, e temeroso do interior. De regresso ao colégio, no eléctrico Tovin, discutíamos ainda excitados da sorte que nos coube. Todavia, o que trago ainda agarrado à pele desse tempo, é aquela desconfortável sensação de mãos transpiradas, do calor abafado das tardes coimbrãs, do silêncio cúmplice que ali reinava, do remoinho que me entontecia até tarde na noite... No silêncio das noitadas, entre a Universidade lá no alto, o TEUC mais abaixo, os cafés da Rua da Sofia, da Praça da Portagem e do parque ao lado onde aconteciam os espectáculos das noites da Queima das Fitas, e onde assisti uma vez ao concerto de António Calvário vaiado pelos machões da capa e batina com epítetos de “panelelro”, “rabicho” e outros nomes que tais. Nunca gostei daquelas cenas deprimentes de gente bêbeda, de machos destravados que escondiam com os seus comportamentos vidas obscuras, pela cada da noite, naquele mesmo parque, mas lá no fundo, bem longe da ponte que une o centro a Santa Clara. Coimbra era um harém de miúdas virgens? “Era possível fazer amor com as namoradas, se bem por vezes em condições difíceis, em pé, sobre um banco de pedra. no chão dos jardins.” (p.86).  

O exílio... 


segunda-feira, julho 15, 2024

Segunda, 15.

Às vezes a vingança e o ódio servem-se frias. É o caso de Trump. Levou anos a fazer a guerra, a incitar os infelizes à violência, com palavras e acções, e no final todo esse vendável de agitação voltou-se contra ele e quase o levava desta para melhor. Que homem sairá desta lição? 

         - Ontem ao serão, para fugir ao sermão dominical da SIC, fiz zap para o canal RTP1. Dei com a final do Campeonato Europeu de Futebol. Tiens. Por languidez, deixei-me ficar a olhar para aquela dança de palhaços aos pinotes, rodeados de fantasmas que pareciam irritados por todo o lado. A dada altura tentei compreender a lógica daquilo e assestei o olhar e as orelhas para o que diziam em off os nossos queridos comentadores. Talvez haja técnica e programa pré-estabelecido para os passos de doble de cada jogador. Todavia, por muito que observasse o movimento da bola e as deslocações dos jogadores no seu encalço, parecia-me ser a oportunidade, a resposta de uns a outros que fazia com que o espectáculo fosse mais que um conjunto de estratégias estudadas nos bastidores. Era a sorte, a força, o entusiasmo e a alegria dos desportistas mais novos (ouvi dizer que um tinha apenas 16 anos, eu que julgava que era interdito trabalhar nessa idade, mas pelos vistos não, ao futebol tudo é permitido). Justamente, do que mais gostei foi dessa criança de origem marroquina, emparceirando com um outro negro, de tranças tremelicando no cimo da cabeça, olhos vivos, nos corpos a juventude ainda não marcada pela sacanice da vida, do dinheiro a rodos, do profissionalismo cotado em bolsa, da cobiça que tudo destrói - da vida à espessura do riso como expressão de felicidade. No final (que eu vi por largos minutos), saíram vencedores os dois rapazinhos espanhóis que festejavam como se o objecto do seu brinquedo, a bola de trapos, já não lhes servisse para o jogo seguinte. O futuro está para além do rectângulo da competição, as quatro linhas não aprisionam os voos que vibram nos dias a liberdade.  

         - No carro ouvi a ex-ministra da Saúde a quem saiu a lotaria de Bruxelas, a falar de temas que a ocupam agora. Pobre, muito pobre. E que será feito da vedeta escalabitana? Com a soma choruda do salário, desapareceu. A vidinha desta gente na Bélgica é salteada de emoções e contactos e festas e encontros e almoços. Eu quando ia com a Annie a Bruxelas – e fui lá com muita frequência – costumávamos abancar no Aux Armes de Bruxelles, perto da Grand Place, um dos restaurantes mais antigos da cidade. Era lá que os arrogantes pobres transformados em ricos importantes, se banqueteavam. Quem os queria ver, ativos, vestidos como agentes funerários, falando ora alto, ora baixo (com a preocupação da mão como ventana na boca, o olhar pesquisando à direita e à esquerda), de costas direitas, ar de ricaço, subitamente elevado a eurodeputado, como se aquilo fosse vida para que sempre se haviam preparado. Lembro-me de um almoço (penso que aqui falei do facto), me ter insurgido e de que maneira, contra um grupo desses zelosos dos nossos direitos, que tratou a minha amiga que foi mais do que eles, pois fez um mandato suplementar pelo PS como vice-presidente de câmara, em Paris, ao ponto de eu ter levantado a voz: “ferme ta gueule”. 

         - Aproveitando o facto de a chuva miúda ter refrescado flores e plantas mais frágeis, atirei-me a limpar o grande loureiro perto de casa. Cerrei com o serrote japonês os grossos trocos que depois dividi em pedaços para a lareira. A folhagem acartei-a para um dos montes de vegetação para queimar no Inverno. Que mais? Fui fazer natação contando apenas comigo três nadadores; colhi a primeira taça de amoras silvestres. 


domingo, julho 14, 2024

Domingo, 14.

Como vai o mundo? Como é normal nos dias de hoje, com um olhar à retaguarda vendo como tantos factos acontecem para abastecer a história de sucessivos desastres. Foi o caso ontem na tentativa de assassinato de Donald Trump. O homem estava em comício republicano na Pensilvânia, quando um jovem de 20 anos, do telhado de uma casa próxima do local, disparou contra o candidato à presidência dos EUA. O silvo do tiro, soou-lhe ao ouvido, raspando ao de leve a orelha direita. O rapaz morreu abatido pela polícia, para trás deixou uma morte e feridos. O mundo inteiro está indignado, embora o tipo de crime seja conhecido dos americanos, de Lincoln a Robert Kennedy. Pode ser que este triste acontecimento, mude a opinião de Trump quanto ao direito de qualquer americano andar armado e seja suficientemente forte para lutar contra a poderosa indústria do armamento. É quase certo que este episódio, reforçará Trump na corrida à Casa Branca. Aos olhos de muitos americanos, o heroico sobrevivente, contrasta com a fragilidade do seu adversário. 

         - Todos os motivos servem a Netanyahu para avançar sobre os inocentes. Desta vez, o alvo era Mohammed Deif, um dos principais responsáveis do HAMAS na Faixa de Gaza. Parece que o guerrilheiro escapou, mas por sua conta morreram para cima de 90 palestinianos. 


sexta-feira, julho 12, 2024

Sexta, 12.

O empregado do restaurante que substituiu o meu velho amigo Gaspar definitivamente na reforma, veio para mim e cumprimentou-me de mão. É um jovem de uns vinte anos, espadaúdo, com tronco impositivo de quem pratica alteres. e rosto de criança. Digo-lhe: “Tenho direito a aperto de mão! O que virá depois? – É um simples cumprimento. Que queria? – Isso não se diz, só se pensa”, respondi. Diz uma senhora atrás de mim que parecia possuir os códigos dos augúrios: “Boa resposta.” E logo eu: “talvez seja melhor dizer sonha.” Grande gargalhada três.  

         - Ninguém consegue travar a ira dos israelitas (talvez fosse melhor dizer sionistas). Nem Biden que os sustem. Para além dos milhares de mortos, muitos deles crianças, sem que com isso consigam os objectivos que se impuseram - perseguir os homens do HAMAS e libertar os cento e tal reféns -, apesar disso ainda prosseguem na apropriação de vasto território palestiniano junto à Cisjordânia para construção de mais colonatos. Um escândalo que dá mais força ao HAMAS e trás à evidência a sua justa luta. Entre este e o senhor Netanyahu e quejandos, que venha o diabo e escolha os terroristas. 

         - Começa, enfim, a haver a coragem de denunciar a plêiade de editores nascidos da sapiência enganadora de que o mercado é fértil. Prometem editar os livros dos autores que as editoras consagradas rejeitam, cobram valores avultados e no fim a obra não aparece impressa ou quando é posta no mercado, os escritores não recebem um único exemplar, nem vêem contas da edição, e nalguns casos nunca o original é impresso. É um negócio das arábias, que mistura o talento de alguns, a cobiça ou vaidade de outros que apenas se querem arvorar em escritores. Eu volta que não volta, recebo mails a desafiarem-me para publicar – já não respondo porque interiorizei que o melhor do circuito é a escrita, a liberdade, o voo planado da criação. Não há editor nenhum que me tire os instantes sagrados quando me isolo para avançar na obra em curso. O último editor com quem trabalhei, ficou com 12 mil euros de direitos de autor. A minha revolta nasce aí. Já Julien Green dizia nos anos Quarenta do século passado, que conhecia muitos escritores pobres e todos os editores eram ricos. Sophia, quando a convidei para o meu programa Nova Musa, revelou-me que nunca tinha recebido um tosto dos livros editados. Yourcenar levou a vida inteira a defender-se dos editores. Tinha até um advogado que se ocupava continuamente dessa tarefa. Os tempos são outros. Hoje, salvo raras excepções, os “editores” só publicam “lixo”. 


quinta-feira, julho 11, 2024

Quinta, 11.

Orbán não pára. Os primeiros passos da sua presidência da União Europeia, foram para visitar os amigos em nome da paz na Ucrânia. Há dias deu um salto a Pequim para falar com Xi Jinping, naturalmente sobre a paz, que o Ocidente e a NATO não acreditam vir a acontecer tão cedo. Entretanto, Bruxelas e Washington, começam a desconfiar das suas intenções. 

         - Ainda a questão dos polícias. Parece que uma parte deles, filiados, decerto, na Intersindical, recusam o acordo salarial da outra parte. Devo dizer, que este imbróglio, é testamento também de António Costa. que descriminou a PSP e GNR, em favor dos agentes do MP. 

         - Se der crédito ao meu smartphone, ontem nas andanças por Lisboa, obtive estes números surpreendentes: 7,5 km palmilhados; 4 pisos; 10584 passos; 7,55 horas de sono. Nada mau. Parece-me... para coxinho coitadinho. 

         - Aqui julgo que encaixa bem a passagem do Acto IV de a ópera Mariage de Figaro.  

Fanchette:

Madame, ce font les filles du bourg qui viennent vous préfenter des fleurs. 

La Contesse:

Ne puvant porter vingt bouquers, faifons honneur à l´étrangére.










quarta-feira, julho 10, 2024

Quarta, 10.

Foi com imenso agrado que assisti à entrevista da Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, na RTP1. Só então percebi que a indicação para o cargo feita por António Costa, foi a sua maior e mais eficaz e única acção política consistente do seu mandato. Porque a senhora é fabulosa, inteligente, pragmática, directa, com personalidade e assertividade, não se refugiando atrás do cargo, pelo contrário, encarando as perguntas e respondendo com conhecimento de causa e chefia bastante para não olvidar nenhum processo ou parecer. É uma personagem, não só pelo porte a um tempo altivo e feminino, presente e ausente, difundindo despreendimento e independência de quem tem consciência das razões que a assistem e da boataria dos políticos afectados pelas suas decisões, sem temor nem fuga aos problemas. Para ela a justiça é a justiça e ponto final. Lucília Gago tem a grandeza das grandes personalidades que escasseiam por todo o lado, enfrenta os problemas e diz olhos nos olhos o que pensa da situação actual, sem deixar de reconhecer os defeitos e injustiças praticadas. Atacada por todo lado, apresenta-se livre e inteira, chama os bois pelos seus nomes, e a dada altura reduz à sua triste insignificância a classe de políticos que acusam o MP de praticar um golpe de Estado, ao deixar claro que a operação Influencer ainda decorre e só no final se saberá qual o grau de infração de Costa e dos camaradas socialistas. As reacções às suas palavras, vieram dos pequenotes habituais: a irritante madame dos cãezinhos, o historiador do Livre e a viúva do BE, ao todo 3 por cento do eleitorado – uma insignificância que só o jornalismo medíocre dá importância. Porque a verdade é que os socialistas e aquele ex-político que passeia num pequeno automóvel vermelho que dá nas vistas pelas ruas do Porto, investem contra o MP e a sua Procuradora. 

         - Luís Montenegro é uma excelente revelação como gestor do país. Ele e grosso modo toda a sua equipa. Mesmo o ex-autarca de Cascais por quem tinha alguma reserva, se revela competente, equilibrado e atento no Ministério das Infra-Estruturas (o desnorte foi a ministra da Justiça, mas nós sabemos as suas origens). 

Vem este preâmbulo a propósito do acordo fechado com os polícias depois de mais de um ano de desordem socialista. Tudo se passou na maior discrição, sem propaganda nem foguetes, simplesmente a obrigação cumprida. O primeiro-ministro não se esganiça como faz o Vasco Gonçalves do PS. É seco, competente e perfeito no tom e na acção.  

         - “... é como o outro do PS que dizia que era filho de sapateiro, mas andava de Maserati”. Conversa, ontem, na Brasileira que apanho a meio entre o empregado de balcão e a colega que tira os cafés.    

          - Ontem terminei o dia no Hotel Roma. Fui levar conforto à Marília e ao João que ali convalesce da operação aos intestinos. Ela foi directamente do Santa Maria para aquela unidade hoteleira. Aqui está uma óptima solução para quem não tem apoio em casa ou tendo como no seu caso, não querem ter a residência devassada pelas visitas. 


segunda-feira, julho 08, 2024

Segunda, 8.

Que grande trapalhada em que a França se meteu. Dá que pensar no que se transformou a Democracia às mãos desta classe política, capaz de tudo e do seu contrário, para chegar ao poder. A manta de retalhos com o chefe Mélenchon ao comando, é disso a prova provada. Tantos pequenos partidos que eu nem imaginava haver, surgiram de todos os cantos para se associarem num projecto sem consistência, sem credibilidade, nem ideologia. A decadência da Europa que muitos sociólogos afirmam ser manifesta, é o facto mais demonstrativo do que aconteceu ontem. A França e a UE, precisam de alguém enxertado da honorabilidade de De Gaulle. O que temos é uma corja de alienados, de gente reles, egoísta, vaidosa, gananciosa e vulgar. Este bando ao lado da dignidade dos ingleses e do seu sistema, que foram a votos também, é gentalha em quem não devemos confiar. Putin ou outro qualquer ditador, tem o terreno preparado para se instalar. Melhor não há. Ou antes, há Edgar Morin, com 102 anos, outro dia ao Libération: “Estamos numa época na qual o triunfo da ilusão e da mentira é uma grande derrota para a França, a Europa e a humanidade. Chegou a hora de uma nova resistência.” Ele que observou “des communistes devenir fascistes, des royalistes devenir communistes». Meu caro filósofo, aperte aí a mão, eu já vi pior.  

Edgar Morin, centenário. Foto do Libération


domingo, julho 07, 2024

Domingo, 7.

Citações. Estas chegam de Pacheco Pereira no Público de ontem: “No ano em que comemoramos um dos raros génios nacionais, Camões, continuamos indiferentes aos estragos que a nossa língua teve com o Acordo Ortográfico”, terminando o artigo assim: “Os patriotas do futebol querem lá saber disto tudo.” Recordo que o AO foi, em 2011, oficialmente e de forma ditatorial, mandado aplicar “apenas” nos serviços administrativos e escolares por José Sócrates, esse mesmo que depois de regressar de Paris e ter sido preso no aeroporto, por tudo e por nada, falava de “narrativa” - a única palavra que aprendeu na Sorbonne que diz ter frequentado. Um génio de diploma de engenheiro tirado ao domingo. E naturalmente um líder político de abrolha. 

         - Marcelo que distribui comendas como quem dá esmolas, dizem os jornais, que condecorou sua sublimidade o bispo de Setúbal, cardeal Américo Aguiar. Este técnico religioso, a mim não me convence e por ele não me aproximo de Cristo. Apetece-me citar o Eclésias: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.  

         - É curioso que Viktor Orbán, assim que assumiu a presidência do Conselho da UE, despachou-se para uma visita rápida a Zelenski e outra ao ditador Putin. Que andará o homem congeminar?

         - Vou fazer como os britânicos que no dia seguinte à vitória do líder do partido ganhador, logo ele se apresentou para trabalhar e já com o Governo formado. Assim eu me apresso a elogiar a primeira medida grandiosa de Keir Starmer: a estúpida lei que trata os imigrantes de escravos, atirando-os do avião para um qualquer terreno baldio no Ruanda foi anulada.  


sábado, julho 06, 2024

Sábado, 6.

Não temos emenda. Desde o Chefe de Estado na sua obsessão por ter a simpatia dos portugueses, e destes de Norte a Sul de Portugal, todos acham que somos os maiores, os mais avançados do mundo, os mais qualificados para isto e aquilo, nomeadamente e principalmente, o futebol, e depois é o que se vê: caímos ao primeiro sopro, não somos capazes de vencer a desilusão de havermos subido acima das nossas capacidades, de termos estado nos píncaros apenas por escassos minutos. A Selecção, ouvia dizer em todo o lado, era a mais capacitada para vencer o Campeonato da Europa, a melhor preparada, com os melhores jogadores, um deles ex-maior do mundo, e fomos derrotados por penáltis não podendo passar do meio do campeonato. Ao menos assim acaba-se a praga mais cedo. Forma de falar, porque ela já vem crescendo desde o tempo de Salazar, atingiu o grau máximo de alienação na democracia. Entreter o povo desta maneira, é para a classe dominante a maneira mais fácil e cómoda de o ter humilde, quieto e distraído sem exigências, conhecimentos, em crescendo para nos tomarem por um bando de patetas quedos e agradecidos, sem espírito crítico, conformados e felizes.

         - Isto de sermos os maiores, serve em primeiro lugar os políticos na sua demagogia corrente, basta escutar Marcelo. Do que somos, ocupa-se hoje António Barreto no Público. Duas frases: “Portugal é um país pequeno, relativamente pobre, pouco sabedor e mal preparado. Sem o Ocidente, o país sofre e declina.” E esta: “A dimensão, a sabedoria, a fortuna, a força e o trabalho exigidos para tratar do mundo estão fora do nosso alcance. Os portugueses dificilmente contribuirão de forma ousada para a paz e o progresso da humanidade.” 

         - O Reino Unido foi a votos e quem volta ao fim de décadas é a esquerda chefiada pelo trabalhista, Keir Starmer. O grande derrotado, que praticamente saiu de cena, foi o partido Conservador chefiado por Riahi Sunak. O que será esta esquerda ou antes o que é esta esquerda inglesa, é o que se vai ver em breve. A fasquia está muito alta e as munições escasseiam.  

         - Noutros pontos – Irão e França – houve e haverá eleições. No caso do Irão, ganhou um, digamos, liberal que pretende aproximar o país do Ocidente. Antigo ministro da Saúde, Masoud Pezeshkian, venceu confortável na segunda volta o ultra-conservador Saeed Jalili. Ora! Ora! Mas afinal quem manda no país continua a ser Khamene – líder religioso que não quer liberdade social e muito menos religiosa. Quanto à França, esperar para ver. 

         - Noite mal dormida, catástrofe pela manhã. Sempre assim fui. A minha preocupação com o sono, supera a da alimentação. Como por necessidade, durmo para conservar a pulsão da vida. Assim e não obstante, depois das regas, removi definitivamente o monte das hastes de bambu para juntar aos dejectos florestais para queima no Inverno. 


quinta-feira, julho 04, 2024

Quinta, 4.

Diz-se que o futuro a Deus pertence. Pela minha parte a Ele entrego não só o porvir, como o presente com tudo o que dia a dia o vai enchendo de fragilidade, temores, esperança e serenidade. Não sei até quando terei capacidade para tratar e fazer o muito trabalho que uma quinta demanda, sobretudo quando o dinheiro não abunda para pedir ajudas externas. Até à data tenho tido saúde e forças para arcar com este projecto. Mas até quando? Em certos dias, ou antes, em certas madrugadas, sou tomado do pavor que ronda aquele espaço de tempo entre o acordar e a sensação que estou mergulhado no sono com pesadelos e antecipações sinistras. Felizmente que à noite regressa o dia e logo todas as preocupações se derrubam ante o resplendor da manhã e da natureza quando abro a janela do quarto. É um momento único, ímpar, mágico, sagrado. Não tenho ilusões, já não sou mais o jovem e jeune-homme de então, tenho de me render às evidências. De contrário, farei as figuras trágicas que se vê acontecer a Ronaldo. Lutarei, tudo farei para me manter saudável e activo, pois estou absolutamente convencido que a vida de apartamento na cidade, com idas ao centro comercial e demoras a ver quem passa sentado nos bancos dessas catedrais de consumo, carcome as pessoas, desmotiva-as, fecha-as num circulo de monotonia e tristeza que nenhum filhinho querido restabelecerá. Ainda que os meus ritmos no campo sejam o inverso dos da cidade, com deitas cedo e levantas madrugadoras, nesta altura para fugir ao rigor da canícula, começando com regas e terminando com labor de vária ordem, e cansaço às nove da manhã, o facto é que ao olhar o caramanchão de hortênsias, apesar do calor, difunde beleza e serenidade quando me detenho, feliz, a admirar a pulcritude sem idade onde o tempo espreguiça voltado para a eternidade...





quarta-feira, julho 03, 2024

Quarta, 3.

Ontem dei um salto a Lisboa para almoçar com o João R.. De caminho entrei na Vodafone para regularizar o telefone de casa e, no decorrer da conversa, tive a feliz informação que duas raparigas que ali estagiavam, eram pagas acima do que se costuma remunerar neste tipo de situação. Bem-haja à empresa onde estou abrigado há uma data de anos e foi a primeira, ainda no tempo dos telemóveis-tijolos, que escolhi como parceira. 

         - Justamente, ao descer da Brasileira para o Rossio, passei em frente daquele quadro terceiro-mundista e vi que de novo os cartões, o cobertor, o tapete haviam sido reapropriados desta vez por um jovem que estava deitado indiferente a quem passava. Apeteceu-me fotografá-lo, mas não tive coragem por respeito e dignidade à sua pessoa. 

         - Eu não compreendo a importância que os órgãos de informação dão à senhorita Mortágua. Todos os dias esbarramos com ela nos ecrãs de televisão a debitar pareceres, a mandar vir com este e aquele, a tomar posição por esta e aquela lei, a esclarecer este e aquele ponto, sempre do lado das suas ideias e programas salteados de pareceres que só a ela dizem respeito e ao partido praticamente unipessoal com um por centro de cativação entre os eleitores. Ela rivaliza com Marcelo e como ele tem sempre uma sentença, uma moral, um trejeito ideológico a marcar presença oficial. Qual viúva contente de haver perdido a falecida, ei-la de longos cabelos negros, de escuro vestida, a lembrar as virgens gregas. 

          - É impressionante a quantidade de mentiras que foram derramadas nos oito terríveis anos de António Costa. Quantas vezes ouvi eu falar de somas astronómicas para a Saúde e vai-se a ver, metade do que foi anunciado, nunca chegou aos hospitais. E quem diz saúde diz ciência, habitação, ensino e por aí fora. Tudo isto em nome das célebres “contas certas” que deixaram o país no caos e na pobreza, na desordem e na irresponsabilidade administrativa. 

         - Jean-Luc Mèlenchon anda em bicos de pés feliz por chegar a primeiro-ministro. Desgraçada França se o tiver em tal cargo e infelizes aqueles que estiverem directamente em contacto com o bicho. Lembro-me do meu amigo do período de Londres, Christian Berteaux. Ele era e é comunista no activo e foi secretário do tempestivo ditador. Teve de o abandonar devido ao seu temperamento autoritário, de quero, posso e mando. Christian, sendo rico, professa a ideologia marxista, mas não vive em sintonia com ela. Ele e tantos outros abastados que eu conheço. 

         - Ainda a saudade do Manel como os amigos o tratavam. Sinto um peso no coração, uma ausência-presença que não se apaga, um desejo de ir ao seu encontro e continuarmos os nossos longos diálogos. Cargaleiro era um homem bom, sorridente, amigo do seu amigo, discreto, solidário, generoso. Conhecemo-nos há muitos anos e esta casa está impregnada da sua presença, seja nos trabalhos que me ofereceu, nos livros que me dedicou, no painel de azulejos que pintou para a entrada da quinta, e, sobretudo, nas prolongadas tardes de Verão quando o ia buscar ao Monte de Caparica para o trazer para aqui. Muitas vezes não passava da cozinha; aí abancava e aí ficávamos à conversa porque ele achava aquele espaço, com sua barafunda, multiplicação de objectos, a dessincronia relativamente ao resto da casa, o lugar onde se sentia bem. Raramente falávamos de arte. Era a vida tout court que se imiscuía, que se deitava nas horas a fazer o croché que nos entretinha até ao jantar. De tão íntimos que éramos, vinham à liça os profundos problemas da existência, da sua e da minha, sem preconceitos nem dores de alma, coisas contadas que nunca poderei revelar, não que ele me tivesse pedido sigilo como fazia Isabel da Nóbrega que me obrigava a jurar nada contar e “muito menos deixar escrito”, mas porque acho meu dever guardar para mim como tesouro maior de toda a sua arte, por ser talvez o mais privado, singular, e preciso traço da sua personalidade e da sua passagem por este mundo. Quando ia a Paris, telefonava-lhe e logo me convidava para almoçar, estar naquele apartamento do Cartier Latin, cheio de luz, voltado para a avenida com as janelas da ex-mulher de Sarkozy do outro lado. Passávamos sempre pela sua galeria, gerida pelo seu marchand e amigo Edouard Loeb, (suponho que era este o nome) e dali fazíamos uma caminhada pedestre até ao Centro Beauborg do outro lado da Sena. Uma vez, estando eu na Cidade Luz, convidou-me para a vernissage de uma sua exposição de azulejos. Acontecimento maior, pela afluência, o interesse dos franceses pela sua extraordinária obra, com a classe política e artística em peso. Mesmo assim, solicitado de todo o lado, encontrou espaço para me vir falar, e, de bom humor e sem peneiras, disse-me quem tinha comprado o pequeno azulejo que ele me indicava – o “mais barato”. Bom. Isto e muito mais, está plasmado em muitas páginas deste diário. Mais tarde, contava-me do interesse de Itália pela sua obra, da oferta que lhe fora feita para ensinar, fazer um museu, com residência para si, em Salerno, depois transferido, se bem me lembro, para Ravello, na costa amalfitana, onde viveu muitos anos o escritor americano  Gore Vidal  e do outro lado do lago Rodolfo Nureyev. 


segunda-feira, julho 01, 2024

Segunda, 1 de Julho.

Dizia-me o João que teve necessidade de contactar o 24 24 e o INEM por causa de um problema grave de saúde da mulher que, como estava a decorrer um jogo de futebol, as estruturas de um e outro lhe disseram que até terminar a partida não havia ambulâncias nem bombeiros de serviço. Outro remédio não houve que enfiar a Marília no pequeno carro da filha e levá-la às urgências do Santa Maria que a operaram durante a noite. Esta irresponsabilidade, esta bagunça nos serviços públicos é ainda o resquício da governação António Costa que temia enfrentar a manta rota da Administração Pública. Luís Montenegro vai necessitar de vários anos para repor a ordem e a responsabilidade que os últimos oito anos socialistas destruíram. Resumindo: por favor caros leitores, peçam aos deuses que não vos carreguem com doença grave na hora em que o país pára para ver os ídolos nacionais a correr em cuecas atrás de uma bola.   

         - Ser velho é nos nossos dias um estorvo, um esfregão sem préstimo. No passado, noutras civilizações, a velhice era usada como passagem de testemunhos e admiração. Hoje, como se viu no debate entre Biden e Trump para a presidência no fim do ano e, embora a diferença de idades não seja tanta (julgo quatro anos), o facto é que o truculento ex-presidente, acusado de vários crimes, humilhou o seu adversário como quis e da forma mais abjecta que se viu nos trechos televisivos. A ganância do poder, cega esta classe política que vem dos escombros sombrios da terra, sem preparação nem ética, obcecada em atingir o lugar que todos subordina e suborna, enriquece e os enlouquece de avidez. 

         - Como aconteceu com Emmanuel Macron. Estava à vista de todos que a sua arrogante decisão de convocar eleições seria o tiro de partida para a maior instabilidade de que há memória depois da Segunda Grande Guerra. Em França como em Portugal, Espanha ou Inglaterra, as campanhas eleitorais não perspectivam, não lançam programas de desenvolvimento, não ensinam a deontologia da aceitação democrática, limitam-se a prometer aquilo que os políticos chegados ao poder são obrigados a desistir semeando o descrédito na democracia e a desolação nos eleitores. Estes, como se constata, votam em quem os engana com mais ousadia, oferecendo-lhes aumentos salariais, subsídios, baixa de impostos, menos horas de trabalho, vida airada. Ninguém se preocupa em saber onde vai o charlatão buscar as avultadas verbas para cumprir as promessas da sua ambição. Se Marine Le Pen chegou à maioria à primeira volta, foi porque os franceses sempre detestaram Macron, votando nele para fugirem da direita. Agora só lhes resta votar nos extremos, a menos que aquela coisa chamada “triangulaires” faça o milagre. 

         - Faleceu aos 97 anos o meu queridíssimo amigo Manuel Cargaleiro. O ano passado falámos ao telefone, mas o nosso encontro não se deu porque não queria infectar ninguém com aquela maldita tosse que a Laure me pegou. Ainda que fosse espaçadamente, o facto é que me faz falta conversar com ele, estar com ele aqui ou no seu apartamento, em Paris. Que Deus o tenha porque ele era a luz das manhãs que nunca morrem. Que saudades, Senhor!