quarta-feira, julho 17, 2024

Quarta, 17.

Vou atirar para trás das costas o rumorejo inútil da política e a fermentação do ódio que se estende por todo o lado, para me ocupar, ironia do destino, de um político e... do PS: Manuel Alegre e o seu livro de lembranças Memórias Minhas. Há nestas recordações, três períodos que eu gostava de separar para melhor compreender e dissecar: a adolescência, o exílio e o retorno com o 25 de Abril incluído à vida apunhalada pelas costas que é próprio da política estragada dos nossos tempos. Pelo meio, o Poeta que Alegre sempre quis ser e foi e do melhor que o nosso meio intelectual possui, fui eu enquanto leitor que lê e relê com paixão os poemas que conheceu na ilegalidade, quando os comprava à socapa numa papelaria do Largo do Rato, em Lisboa, para logo, na ânsia de os devorar, se ir sentar no café Danone com o Alberto seu vizinho e amigo da Rua do Salitre.  

A adolescência. O grosso livro de 400 páginas abre com a luz de um mundo feliz, que a criança e o adolescente que Manuel Alegre foi, a inundar-lhe a existência. Não sendo rico, possui todavia uma certa tradição aristocrática (“Sou um republicano com uma costela sentimental monárquica.” (p. 27) que ainda hoje e talvez malgré lui, se manifesta no seu modo de estar e agir. A juventude é passada entre Coimbra onde estudou e Águeda de onde desce à cidade dos estudantes para aí conhecer ou selar aquilo que avós e pai viveram e lhe transmitiram. Alegre deve a Coimbra tudo o que mais tarde seria o seu suporte ideológico, a sua manta de agasalho, o seu pendor um pouco arruaça, que até fica bem num adolescente demasiado vinculado ao padrão católico, apostólico, romano da família, os amigos que o acompanham ou acompanharam no decurso de uma existência trepidante e repleta de tudo incluindo desgraças. Todas as aventuras e particularmente as amorosas, desaguam no adolescente que obcecadamente a cada minuto dos seus dias quer encher o coração da fermentação que a vida por ser desassossegada o alucina. As ruas e praças de Coimbra, cafés e universidades, qualquer lugar onde palpite o rumor, a vociferação contra o Estado Novo, ei-lo a marcar a cadência dos silêncios, das assembleias de estudantes, dilatórias, plenários, enfim, agitação que faça frente ao insuportável viver de Salazar. Há nele uma intrínseca liberdade de agir, uma certa alegria que o tumulto exerce sobre a sua personalidade vibrante que o faz estar sempre em movimento até altas horas da noite. Por essa altura, pertence ao PCP, e esse facto tolda-lhe em certo sentido não só a mente, como a palavra que transporta para o poema lhe parece mais acutilante que os temores dos camaradas amarrados a ideologias ferozes, que cedo compreendeu nada terem a ver com a sua forma de ser, estar, viver a liberdade. 

Curiosamente, eu que muitos anos depois chego a Coimbra, vejo-me em concatenação com o memorialista a folhear a minha vida através dos sítios, dos movimentos, da loucura, da atmosfera que também vivi. São-me familiares os nomes dos cafés – o Mandarim, o café Montanha, o Piolho, o Madeira onde eu ia todos os dias jogar bilhar depois do jantar. Este café fora mais tarde comprado pelo Manel que era prefeito no Colégio Camões e dizíamos nós alunos um pide entre aluviões de rapazes que o frequentavam. Na rua com o mesmo nome, morava numa casa logo à entrada, à esquerda, Miguel Torga, o colégio fechava a correnteza de vivendas lá no fundo, com a estátua do poeta que lhe deu nome à entrada. O Terreiro da Erva, atrás do Diário de Coimbra, onde aos domingos entrei uma ou outra vez, e onde pela primeira vez vi uma mulher nua, pois aquela zona era um espaço de Sodoma e Gomorra e prostituição de terrível encanto.  Com colegas, chegávamos excitadíssimos, subíamos ao primeiro andar, observávamos as fotos das raparigas e cada um desaparecia por algum tempo no nevoeiro intenso, abafado, e temeroso do interior. De regresso ao colégio, no eléctrico Tovin, discutíamos ainda excitados da sorte que nos coube. Todavia, o que trago ainda agarrado à pele desse tempo, é aquela desconfortável sensação de mãos transpiradas, do calor abafado das tardes coimbrãs, do silêncio cúmplice que ali reinava, do remoinho que me entontecia até tarde na noite... No silêncio das noitadas, entre a Universidade lá no alto, o TEUC mais abaixo, os cafés da Rua da Sofia, da Praça da Portagem e do parque ao lado onde aconteciam os espectáculos das noites da Queima das Fitas, e onde assisti uma vez ao concerto de António Calvário vaiado pelos machões da capa e batina com epítetos de “panelelro”, “rabicho” e outros nomes que tais. Nunca gostei daquelas cenas deprimentes de gente bêbeda, de machos destravados que escondiam com os seus comportamentos vidas obscuras, pela cada da noite, naquele mesmo parque, mas lá no fundo, bem longe da ponte que une o centro a Santa Clara. Coimbra era um harém de miúdas virgens? “Era possível fazer amor com as namoradas, se bem por vezes em condições difíceis, em pé, sobre um banco de pedra. no chão dos jardins.” (p.86).  

O exílio...