Quarta, 3.
Ontem dei um salto a Lisboa para almoçar com o João R.. De caminho entrei na Vodafone para regularizar o telefone de casa e, no decorrer da conversa, tive a feliz informação que duas raparigas que ali estagiavam, eram pagas acima do que se costuma remunerar neste tipo de situação. Bem-haja à empresa onde estou abrigado há uma data de anos e foi a primeira, ainda no tempo dos telemóveis-tijolos, que escolhi como parceira.
- Justamente, ao descer da Brasileira para o Rossio, passei em frente daquele quadro terceiro-mundista e vi que de novo os cartões, o cobertor, o tapete haviam sido reapropriados desta vez por um jovem que estava deitado indiferente a quem passava. Apeteceu-me fotografá-lo, mas não tive coragem por respeito e dignidade à sua pessoa.
- Eu não compreendo a importância que os órgãos de informação dão à senhorita Mortágua. Todos os dias esbarramos com ela nos ecrãs de televisão a debitar pareceres, a mandar vir com este e aquele, a tomar posição por esta e aquela lei, a esclarecer este e aquele ponto, sempre do lado das suas ideias e programas salteados de pareceres que só a ela dizem respeito e ao partido praticamente unipessoal com um por centro de cativação entre os eleitores. Ela rivaliza com Marcelo e como ele tem sempre uma sentença, uma moral, um trejeito ideológico a marcar presença oficial. Qual viúva contente de haver perdido a falecida, ei-la de longos cabelos negros, de escuro vestida, a lembrar as virgens gregas.
- É impressionante a quantidade de mentiras que foram derramadas nos oito terríveis anos de António Costa. Quantas vezes ouvi eu falar de somas astronómicas para a Saúde e vai-se a ver, metade do que foi anunciado, nunca chegou aos hospitais. E quem diz saúde diz ciência, habitação, ensino e por aí fora. Tudo isto em nome das célebres “contas certas” que deixaram o país no caos e na pobreza, na desordem e na irresponsabilidade administrativa.
- Jean-Luc Mèlenchon anda em bicos de pés feliz por chegar a primeiro-ministro. Desgraçada França se o tiver em tal cargo e infelizes aqueles que estiverem directamente em contacto com o bicho. Lembro-me do meu amigo do período de Londres, Christian Berteaux. Ele era e é comunista no activo e foi secretário do tempestivo ditador. Teve de o abandonar devido ao seu temperamento autoritário, de quero, posso e mando. Christian, sendo rico, professa a ideologia marxista, mas não vive em sintonia com ela. Ele e tantos outros abastados que eu conheço.
- Ainda a saudade do Manel como os amigos o tratavam. Sinto um peso no coração, uma ausência-presença que não se apaga, um desejo de ir ao seu encontro e continuarmos os nossos longos diálogos. Cargaleiro era um homem bom, sorridente, amigo do seu amigo, discreto, solidário, generoso. Conhecemo-nos há muitos anos e esta casa está impregnada da sua presença, seja nos trabalhos que me ofereceu, nos livros que me dedicou, no painel de azulejos que pintou para a entrada da quinta, e, sobretudo, nas prolongadas tardes de Verão quando o ia buscar ao Monte de Caparica para o trazer para aqui. Muitas vezes não passava da cozinha; aí abancava e aí ficávamos à conversa porque ele achava aquele espaço, com sua barafunda, multiplicação de objectos, a dessincronia relativamente ao resto da casa, o lugar onde se sentia bem. Raramente falávamos de arte. Era a vida tout court que se imiscuía, que se deitava nas horas a fazer o croché que nos entretinha até ao jantar. De tão íntimos que éramos, vinham à liça os profundos problemas da existência, da sua e da minha, sem preconceitos nem dores de alma, coisas contadas que nunca poderei revelar, não que ele me tivesse pedido sigilo como fazia Isabel da Nóbrega que me obrigava a jurar nada contar e “muito menos deixar escrito”, mas porque acho meu dever guardar para mim como tesouro maior de toda a sua arte, por ser talvez o mais privado, singular, e preciso traço da sua personalidade e da sua passagem por este mundo. Quando ia a Paris, telefonava-lhe e logo me convidava para almoçar, estar naquele apartamento do Cartier Latin, cheio de luz, voltado para a avenida com as janelas da ex-mulher de Sarkozy do outro lado. Passávamos sempre pela sua galeria, gerida pelo seu marchand e amigo Edouard Loeb, (suponho que era este o nome) e dali fazíamos uma caminhada pedestre até ao Centro Beauborg do outro lado da Sena. Uma vez, estando eu na Cidade Luz, convidou-me para a vernissage de uma sua exposição de azulejos. Acontecimento maior, pela afluência, o interesse dos franceses pela sua extraordinária obra, com a classe política e artística em peso. Mesmo assim, solicitado de todo o lado, encontrou espaço para me vir falar, e, de bom humor e sem peneiras, disse-me quem tinha comprado o pequeno azulejo que ele me indicava – o “mais barato”. Bom. Isto e muito mais, está plasmado em muitas páginas deste diário. Mais tarde, contava-me do interesse de Itália pela sua obra, da oferta que lhe fora feita para ensinar, fazer um museu, com residência para si, em Salerno, depois transferido, se bem me lembro, para Ravello, na costa amalfitana, onde viveu muitos anos o escritor americano Gore Vidal e do outro lado do lago Rodolfo Nureyev.