Quarta, 23.
Ainda esses tempos dourados da nossa juventude eterna. Muitos foram os colegas com quem convivi durante os quatro anos de aprendizagem. Do Centro Universitário, os que ainda hoje guardo comigo, lembro o Vítor Oliveira, a Gi, o António Carlos Carvalho que me levou mais tarde para o jornalismo, Alexandre Ribeirinho nosso mestre ilustre, a Alexandra, a Maria João; da Rádio Universidade todos os que citei ontem, mais o Balsinha que entrou directo para a televisão e faleceu há uns anos, o Fernando de Sousa que foi correspondente em Bruxelas, o Zé Manuel Nunes, o Fialho Gouveia que saiu quando eu entrei, e passo o Cartaxo e Trindade por ser desonesto e respeitar a sua morte, e tantos outros cujos rostos conservo tendo esquecido os nomes. Sem olvidar a dona Berta que me dactilografava os textos todas as semanas, em papel amarelo da instituição, e tinha uma paciência cristã na adivinhação e interpretação da minha caligrafia.
- Deixei-me desabafar: sempre nutri uma camaradagem e profunda amizade e simpatia pelo Zé. São raras, raríssimas, as vezes que folheio um livro meu. Faço-o agora para transcrever o que escrevi no terceiro volume do Diário publicado Nas Margens da Inquietação, a propósito do meu primeiro livro A Ruptura, que viria a ser prémio anual do Diário Popular para o romance.
22 de Janeiro de 1979 – “O meu amigo José Manuel Nunes convidou-me para ir ao Contraponto que mantém com elevado nível na RDP. Ao chegar ao estúdio decorria uma mesa redonda sobre a Reforma Agrária. Enquanto esperava, outro remedio não houve que ouvir a lengalenga do costume, rosário conhecido de falsidades e atropelos elementares. A seguir entrei eu. O Zé fez as perguntas que eu imaginava e lá me desenrasquei-me como pude. O mais gratificante veio depois, microfone fechado, quando ele me disse: “Sabes, o livro é sobretudo muito sereno.”
23 de Janeiro de 1979 – “Ao regressar a casa depois de ter jantado com o Luís na Brasileira, liguei o rádio para ouvir a emissão do Zé. Tudo quanto ele disse, a forma como disse, a escolha dos excertos, a música, as opiniões, deixaram-me profundamente abalado e agradecido e este sensível e culto homem que fez da cultura um instrumento de beleza e dignificação da pessoa humana, que me apetece dizer: “A Ruptura deixou de me pertencer e passou a ser propriedade sua.”
- Há um coro de falsidade e hipocrisia a desaguar em Roma para assistir às cerimónias fúnebres do santo Papa Francisco. Para alguns, é um excelente fim-de-semana de compras e jantares, visitas e encontros festejados e ainda por cima pagos pelos impostos dos respectivos cidadãos. Francisco sempre os topou, embora os recebesse muitas vezes com indiferença. Como no caso de J D Vance que pôs na lapela o crachá de ter sido último dos vígaros a estar com Sua Santidade.
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Milhares despedem-se do Papa Francisco. |
- Oh, felicidade! Depois do almoço, regressei ao trabalho em tronco nu do corte da erva daqui de ao pé de casa até ao portão. Foram quase duas horas benditas que me transportou às alturas da vida sem dores nem outras preocupações. Eu que pensava estar arrumado, não conseguindo manter este espaço com dignidade, eis que tudo em mim remoçou. Tal como nos últimos vinte anos que vou a Paris e digo para mim mesmo “desta vez não vou conseguir calcorrear a cidade porque a perna que as francesas devoram esfregando os lábios, não aguentará”, também agora julgava ter de vender isto para não sofrer com a paisagem desordenada e selvagem que aqui se instalou com o Inverno violento.
- Mas deixem-me acrescentar mais qualquer coisa. Posso? Se me permitem vou dizer-lhes o segredo desta energia frágil e forte ao mesmo tempo: não olhem à idade, não pensem nunca nela, façam por a combater e com ela o espreitar maroto da morte. Não parem nunca, não se isolem com a netinha nos braços no passeio dos tristes, vivam a vossa vida na vossa idade, continuem interessados por tudo, leiam continuamente, pensem, isolem-se para carregar vontades e prazeres, e quando em conversa sair alguma taralhoquice e forem censurados, não liguem – tenham o esquecimento ou a trapalhada ocasional em conta, pensem nela e nesse pensar reside o avanço emocional que irá trazer-vos à memória a cautela que escapou. Se caírem, levantem-se. Não queiram ajudas, tentem primeiro com as vossas energias e só depois, se necessário, acolham o braço do caridoso. Não se entreguem à vida de casa, ao jornal lido nos bancos do centro comercial manhãs e tardes sem fim, não se descaiam demasiado para o lado dos filhos e netos, e pensem que o mundo mudou tanto que é hoje um lugar de fantasmas sequiosos de riqueza sem misericórdia nem afecto. Filhos atacam os pais, deixam-nos apodrecer nos lares, e com eles em pele e osso, prosseguem como se tivessem vindo ao mundo por obra e graça do Demónio. É livres e independentes que nós podemos aspirar à morte serena. Nunca deixem de laborar – o trabalho é a extraordinária força que conserva a vida. Vou tomar um duche.