Terça, 29.
Dizem os jornais que 400 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre do Papa Francisco desde a Basílica de S. Pedro à Basílica de Santa Maria Maior onde repousará para a eternidade. Eu conheço bem a distância por, pelo menos duas vezes, ter feito o percurso. A separá-las está não só o Coliseu, como as artérias centrais que atravessam o centro e mais além a célebre Fonte de Trevi e ali perto a monumental escadaria da Praça de Espanha encimando com a igreja Santissima Trinità dei Monti. A população acumulava-se, de um lado e outro das artérias, compungida e silenciosa, outra tanta seguia atrás de féretro. Nunca se tinha visto nada assim. Mesmo com o Papa João Paulo II que, decerto modo, foi popular.
- Justamente. Lembro-me de ter registado nestas páginas a estada de Francisco no Brasil. Ante tudo o que vi, pareceu-me espectáculo a mais e achei, e continuo a achar, que Deus se manifesta melhor e mais profundamente no silêncio por ser essa a sua linguagem. Eu sei que estando no Brasil e conhecendo-se os atributos dos brasileiros, talvez doutro modo não podia ser. Seja como for, é para mim evidente que os dois papas marcaram a Igreja com a sua personalidade, embora ache que Francisco nunca se despegou da missão para que foi incumbido pelo Espírito Santo. Era político na medida em que o mundo concreto não chegava aos políticos ou era por eles ignorado; e apenas e só quando os mais desfavorecidos eram postos de lado; ou acima do humano se sobrepunha a ganância de uns quantos; ou o poder era radical; as guerras e o desprezo do outro destruíam o que havia de mais sagrado na natureza humana. Levou a Palavra de Jesus a muitos cantos do mundo, mas fê-lo como missão, com sacrífico da sua saúde, desprezando a propaganda copiada dos governantes sem programa, sem critérios, sem perspectivas, puros sanguessugas que se agarram à mentira para obter o que não lhes pertence. João Paulo II era mais político. Tendo vivido sob o regime da ex-URSS, estava-lhe no sangue uma secreta revolta que os anteriores donos do Império Russo ainda não desistiram de voltar a unir. Aliás, estou a agora a lembrar-me de um famoso encontro do papa polaco com o astrólogo Stephen Hawking. A dada altura falaram sobre o famoso big bang. A discussão aqueceu e vai daí diz-lhe o Papa Karol Wojtyla: “Vamos ver se nos entendemos, senhor Hawking: tudo o que vem depois do big bang é seu; o que está antes é meu.” Não é tão engraçado e definidor de uma personalidade forte?
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Stephen Hawking defensor fervoroso de novos mundos na mecânica quântica. |
- O mundo, tal como hoje o encontramos, parece descair para o colapso. Tantos crimes, tantas tragédias misteriosas, uma geração a crescer na insatisfação, no uso da banalidade de toda a espécie como representação da vida sustentada por valores morais e religiosos, sociais e compassivos. Em França, por exemplo, quase todos os dias há assassinamentos entre jovens liceais; nos EUA o uso de armas sendo autorizado, é causa por tudo e nada, de assassinatos; em Vancouver onze pessoas morreram quando um condutor avançou sobre a multidão que assistia a um espectáculo filipino; no Irão estão contabilizadas 65 mortes na explosão de sábado passado no porto comercial. E passo.
- Ontem, pelas onze da manhã, o dia fechou-se e logo a seguir encerrou a vida tal qual a conhecemos desde há cem anos. Um apagão pôs tudo e todos às escuras e com o avançar da noite suspensos do inusitado acontecimento. Eu experimentei um certo gáudio por não ter energia que fizesse funcionar o computador, o frigorífico, a televisão, o rádio, a Internet, enfim, qualquer meio que me devolvesse a pacatez quotidiana dos serões. Havia em mim uma sensação de passividade, de ronronamento, de estaticidade. Enquanto fez dia, após o jantar, sentei-me lá fora no terraço a ler. Li até às nove e meia. Pelo meio tentei saber o que se passava, mas também não tinha Vodafone, e até o fixo se calou e a água na torneira caía em bico. Então voltei para dentro, acendi velas e lamparinas no salão e deixei-me esvair numa espécie de santidade que o altar em que transformara o interior me proporcionava. Às dez e meia, perguntei o que estava eu ali a fazer, afundado em fantasias cerebrais, algumas que não se contam a ninguém e subi para dormir. Adormecei de pressa e acordei célere e verifiquei que o aparelho que tenho na mesa de cabeceira já respondia pela voz da TSF às minhas perguntas e, sobretudo, mais uma vez decifrava o povo que somos. A suite para amanhã porque o texto vai longo.