Terça, 1 de Abril.
Aqui estou de volta ao meu púlpito. A cirurgia decorreu como eu pensava, ou melhor ainda. Não durou mais de quinze minutos, operada pelo mestre-sumidade que ninguém questiona – Dr. João Feijão. Acompanhado do meu assistente social, o pintor Carlos Neto, entrei no Gama Pinto às nove horas e saí pelas onze. Pelo meio da maratona do clínico (que até às treze horas operou 24 pacientes!!), houve de tudo: risada, bênçãos, uma agulha mal utlizada para o soro apesar da minha observação, uma fome maluca (quando ouvi o apelido do bom médico, disse imediatamente: “agora ia”), assim como o espectáculo do povo, povo, que não percebendo nada do seu corpo expõe a misericórdia aos alvores da ignorância e da tristeza. Antes de entrar com o meu amigo para um quarto onde me ordenaram me despisse e enfiasse um uniforme de astronauta azul, sapatilhas e touca da mesma cor, abençoei o friso de idosos e idosas encolhidos na sala de espera, o pavor estampado como se a morte já os estivesse a abraçar. A bênção arrancou-lhes um sorriso e foi com os seus rostos abertos ao assomo da alegria, que me sentei numa cadeira rolante com destino à sala de preparação antecâmara do bloco operatório. Aí encontrei uns seis doentes, enrolados na dor, na tristeza, na incerteza, silenciosos, obedientes às enfermeiras que os preparavam para a morte. Eram cómicos aos meus olhos, com o saiote pelo meio das pernas, a touca à trolaró, o corpo abandonado nas cadeiras que deveriam entrar na sala de operações com eles deitados, expondo por desamparo, as misérias íntimas. Chegada a minha vez, mal tive tempo para saudar a minha oftalmologista Dra. Margarida Marques que me veio cumprimentar. Disse-lhe: “Bons olhos a vejam” e ela desapareceu para não mais voltar. Estou, pois, deitado com os projectores em cima de mim, o ambiente gélido, o dia luminoso lá fora. Mal vi o cirurgião e se me perguntarem como ele é, não saberei responder. Isto porque o acto médico processou-se, por assim dizer, nas minhas costas. Sei que no inicio ele me explicou que devia colaborar, não deixando nunca de fixar a luz mais intensa de um bloco de luzes que ele me introduzia na vista esquerda. Foi o que fiz e à medida que a cirurgia avançava, percebi a dança de limpeza da catarata e colaborei sem um ai, e sempre de bom humor. “Com a sua colaboração, esta é a operação mais rápida que faço.” E com efeito, daí a uns quinze minutos saí para o recobro onde encontrei parte dos velhos e velhas em estado terminal, olhos no tecto, o pensamento vagueando por sobre os escombros da morte anunciada que não chegou a apresentar-se, mas os deixou no limite da dúvida. Aí fico uma data de tempo. A dada altura, chamo um assistente, e digo-lhe que me traga um bife com batatas fritas. Gargalhada geral, o mundo comatoso ressuscitou e toda a gente riu. Em vez disso, o que me dão é um copito de chá de tília com quatro pequenas bolachas e não digas que vais daqui. Engulho aquela riqueza com sabor a lampreia seguida de molotov (doce que curiosamente nunca comi). Nesse entretanto, a procissão dos condenados avançou, eu estou agora no limite para qualquer coisa que não sei o que é. Quando me mandam erguer da cadeira rolante em camisa de noite à moda antiga, vejo o Carlos sorridente na frente. Tem com ele a minha roupa e haveres que guardou num cacifre enquanto era operado. Dispo a camisa de dormir, tiro a boina, os sapatos de quarto e começo a vestir a minha querida roupa. Já com a dignidade de um vencedor, é-me dado um kit de medicamentos (antibiótico, dois colírios) para pôr durante todo o mês. Avisam-me que teria de voltar no dia seguinte, isto é, ontem à consulta.
No táxi fomos, Carlos e eu, para sua casa ao Campo Pequeno. O dia estava deslumbrante, o meu apetite – eu que raramente tenho fome – estava ao rubro. Convidei-o para um almoço à maneira. Trouxe uma tala no olho que não me deixava ver bem o caminho. Fizemos o curto percurso a pé, por vezes apoiava-me no braço do meu assistente social. Chegados ao restaurante, somos recebidos por um par de moçoilos brasileiros que, com as suas características próprias que nós nunca sabemos ao que vêm, foi-nos oferecido uma cozinha simples mas muito boa. Desforrei-me e o Carlos bebeu um copo de vinho que eu intimamente invejei. Bem banqueteados, sempre sob o humor que nos ataca quando nos juntamos, regressámos ao ponto de partida. Eu tinha combinado com ele ficar lá a dormir, mas como a consulta era só às cinco da tarde do dia seguinte, agradeci a generosidade e chamei o meu motorista privativo, Sr. Gaspar, que me foi buscar no táxi para me trazer de volta a este paraíso. Ontem, já fui no fertagus. A consulta com a Dra. Margarida Marques consistiu numa espreitadela para dentro do meu olho e a indicação que estava tudo bem, obstando-me apenas a natação até ao fim deste mês. Há, contudo, um pormenor que me desgostou. Desde a véspera que se tinha instalado uma festa no meu olho na forma de foguetes luminosos. Minuto a minuto, do lado esquerdo da vista, ribombavam luzes e eu divertia-me com aquilo. Disse-o à médica e ela retorquiu que iria passar – e na realidade a festa já findou. Que tristeza!
- No domingo tomei o comboio muito cedo. Pelo caminho, os poucos passageiros que iam entrando eram quase todos africanas e africanos que iam para o trabalho. São eles que abrem as manhãs e fecham as noites, inundam os dias com o esforço das suas vidas.