quarta-feira, abril 16, 2025

Quarta, 16.

Tenho aqui uma infinidade de tarefas que não parecem acabar. Temo as dores lombares se me afoito a realizá-las. Não vou ter contudo outro remédio. Mas ontem, tendo passado de raspão na Brasileira, logo me escapei para o meu refúgio na Fnac onde tive a surpresa da aparição de Ana Boavida. Ali estivemos à conversa umas três horas e no final, aquilo que ela me contou, encheu página e meia. Ganhei o dia e esqueci este reduto que com o tempo me parece difícil de manter. Todavia, esta manhã ao acordar, olhando o dia claro e o sol que o banhava, senti crescer dentro de mim aqueles impulsos, como direi, sobrenaturais que me empurram para a vida e desta para a descoberta dos dias cheios da felicidade de existir, pese embora os esforços dos gangsters que governam o mundo insistindo em o destruir. 

         - Outro dia telefonou-me o Fernando Dacosta. Há anos que não sabíamos um do outro, desde que a maçã impressa no meu iphone me limpou todos os contactos. Dos não sei quantos que existiam, ele é agora o 150. Tenho por ele estima desde o tempo em que ambos éramos jornalistas e nos encontrávamos com regularidade. Parece estar intacto: na voz, na memória, no acolhimento. Quem operou este regresso, foi outra jornalista, Lurdes Féria, que me forneceu o número. Reservámos um encontro para breve em Lisboa. Tinha ideia que ele vivia hoje em Sampaio uma aldeia perto de Sesimbra. Não. Vive na Parede no mesmo apartamento que conheço. Logo no início da conversa esta pergunta que me surpreendeu: “Ainda vives nessa casa magnífica? – Enquanto puder, sim”, respondi.  

         - Aguardo com ansiedade o dia em que voltarei ao Gama Pinto para acertar a graduação dos óculos, de acordo com o que a cirurgia corrigiu. Isto porque há pelo menos mês e meio que deixei de ler, reservando a vista para a escrita e mesmo assim com imensa dificuldade. Tenho ali uma pilha de livros – romances, ensaios, memórias, três diários – que fui adquirindo. Quando os folheio, parece que me interrogam por se verem ali, alçados, abandonados, à espera que eu confirme a importância que decerto têm. De entre a enorme estante sentem-se sós, sem vida, sem comunicação, sem préstimo. Talvez no seu silêncio, ou no murmúrio pelo adiantado das noites, se achem marginalizados face aos milhares de outros que enchem a biblioteca de cima. Sim, um livro sem leitura é um objecto rejeitado, um ser sem identidade, uma parede de silêncio. Quem lhe dá vida, quem lhe acrescenta vida, é o leitor, sobretudo aquele que tem o salutífero hábito de com ele dialogar nas margens de cada página. 

         - Por vezes suspendo-me a olhar o firmamento escuro, a ver através das nuvens o desastre em que o mundo está a mergulhar. Tudo porque a doutrina dos Evangelhos foi posta de parte e até os eclesiásticos ajudaram ao seu naufrágio. O que vejo hoje, é a cena teatral que representa a hipocrisia daqueles que se dizem crentes, mas consagram todo o seu tempo à luta que os amortalhará.