Sábado, 16.
A vida é como nós a construímos. Daí que não vale a pena chorar no molhado, apenas temos de nos adaptar ao que chega venha de onde vier. Dá-se o caso de ter que ficar sem carro até Setembro devido às férias deste e daquele, desta e daquela empresa. Por isso, o mecânico informou-me que havendo um problema nos injectores (suponho que foi a palavra) os homens da marca estão fechados. Logo o John, a Glória e o Jean se propõem bater ao portão de cada vez que passem por aqui perguntando se preciso de qualquer coisa, mesmo uma simples ida ao café. Assim, levo já uma semana de reclusão, com a escapela, ontem, a Lisboa e não sinto angústia de nenhuma espécie. Ao contrário, pelo muito que aqui há para fazer, tenho-me dedicado a pequenos trabalhos que fui adiando sine die. Glória à vida sem transporte pessoal! E se não fosse o coxinho, coitadinho, iria daqui à estação de comboios do Pinhal Novo a pé. Olarila!
- Ontem, dizem os meteorologistas, as temperaturas aqui tocaram os 41 graus (penso que um pouco mais). Depois das regas, tranquei-me em casa de portadas fechadas e a temperatura ficou constante todo o dia sem precisão de ligar o ar condicionado. Que bem se esteve engatando trabalho atrás de trabalho, leitura após leitura, umas quantas linhas no romance, telefonemas, limpeza das facturas na minha página do Fisco, confecção de um prato para arquivo, limpeza-leitura de jornais retardados, etc..
- Outra das minhas actividades tem sido recolher os livros que fui lendo e deixados por aqui e por acolá e levá-los para a biblioteca de cima. Foi o caso de o último Diário de Marcello Duarte Mathias, A Desoras (2017-2023). Talvez seja um dos seus melhores registos quotidianos, porque a idade veio em seu auxílio, transmitindo-lhe um pouco de humildade e visão do que se passa à sua volta. Em verdade, o autor, nunca despiu o smoking de embaixador, e as suas opiniões chegam em catadupa de nariz um pouco empinado. Goste-se ou não - eu sou dos que nem sempre aprecio -, mas nem por isso a sua leitura deve ser abandonada, porque nas 318 páginas há infinitos momentos que nos detêm maravilhados. Ao contrário de Mário Cláudio para quem “escrever complicado é escrever datado” (juízo de Marcello Mathias, referindo-se à generalidade dos escritores), a escrita deste livro é não só brilhante como nos enriquece de sabedoria. No escritor do Norte há uma atitude pernóstica que me irritou; neste um certo ar aristocrático, de classe, de snobismo que me agasta. Não somos perfeitos como se vê. E o que é isso de perfeição, bom Deus! Vou deixar aqui duas passagens que atestam o quanto nos enriquecem a sucessão das outras. Referindo-se à velhice: “O declínio não é gradual, progressivo, prolongado, previsível. Bem pelo contrário. Envelhece-se de forma abrupta, por patamares, e a partir de certa altura cada patamar é um fosso. Um abrir de abismos.” E esta. “Hoje, perante a afirmação do islamismo, e sobretudo do islamismo político antiocidental, sinto (eu que sempre me situei um tanto fora destes assuntos) como um dever proclamar-me cristão. E agir em conformidade. Dever moral, obrigação civilizacional. E cristão solidário com as demais comunidades irmãs, atacadas, perseguidas, assassinadas por esse mundo fora, na Europa e alhures. Solidário com as igrejas arrasadas, como ainda recentemente no Alto Carabaque. Sim, cristão e católico, para tudo dizer, que se viva ou não plenamente a dimensão da fé.” E ainda este belíssimo instante quando o autor deambula pelo seu jardim e a mulher (grande leitora de Julien Green, diga-se de passagem) fina-se aos poucos): “Às voltas por este nosso jardim, a admirar estas florezitas amarelas muito espigadas, que me dizem ser malmequeres (?!) Já com saudades da Primavera, ainda soterrada; por enquanto apenas soterrada. Ficaremos, pois, os dois aqui, por estes próximos meses, à espera um do outro...”
- A técnica diarista é especial quando exercida pelo autor para si mesmo. Por estes excertos, poderá perceber-se a grande diferença que vai entre Marcello Mathias e Mário Cláudio. Neste é o apontamento, o toca e foge, a imposição (não quero ser injusto) do conhecimento; naquele a profundidade, o sentir, o desabafo terno da fragilidade que se expõe primeiro diante de si próprio e depois dos seus leitores. Aqui não existe construção do eu, do carácter, da sabedoria imposta; o escritor abre-se no recolhimento da escrita, no murmúrio da dor, e nós sentimo-lo acorrentados como ficamos ao fluir dos afectos, do desamparo, da misericórdia. Um diário é acima de tudo um sopro instantâneo, um diálogo consigo próprio, um permanente rumorejar que se perde nos dias, nos anos, na vida...