Segunda, 10.
Se quisesse caracterizar o dia de ontem, diria que foi sagrado. Desde logo, porque me sentei no pequeno bistrot do Corte Inglês, primeiro andar, seriam 10 e pouco para uma sessão de trabalho no romance que se prolongou até ao meio-dia. Começou arrastada, sofrida, cada palavra arrancada a ferros, o precipício do desespero a querer instalar-se. De seguida, a pouco e pouco, piano pianíssimo, Ana Boavida e o filho Kivine começaram a abrir os seus corações e a contar-me tudo o que neles escondiam. Daí fui a um daqueles restaurantes barulhentos e desassossegados do rés-do-chão e enfiei uma sopa e um crepe de legumes e raspei-me para adquirir o bilhete para o filme A Semente do Figo Sagrado do realizador iraniano Mohammad Rasoulof.
- Filme magistral, bem dirigido por um naipe de actrizes e um actor seguro, passado no Irão dos aiatolas, onde impera o fanatismo religioso e político, e onde, como sabemos, as mulheres são presas e mortas por não trazerem a cabeça coberta com o véu islâmico. Iman, a personagem principal, pai de duas raparigas e marido de uma mulher dócil que tem de se submeter ao poder do chefe da família e, ainda por cima, advogado com aspirações a ser promovido para o Tribunal Revolucionário de Teerão. O filme, na maior parte do tempo, é centrado nele, na sua obsessão pelo novo cargo. Quando isso acontece, é-lhe atribuída uma arma e o regime pressiona-o para assinar sentenças de morte sem julgamento. O poder dizima os jovens que descem às ruas de Teerão, encarcera centenas de estudantes das universidades, uma das filhas do juiz (a mais velha) participa nas manifestações e grita pela liberdade e contra a alienação a uma religião que oprime, que não avança, que ficou perdida na Idade Média. Portanto, do interior do seu próprio lar, uma das filhas conspira, protege as colegas, revolta-se com aquele extremismo que sustem não só a política como os seus altos magistrados. Até que um dia, a arma do oficial de justiça desaparece. O homem tinha nela o poder absoluto, a confiança que lhe foi atribuída enquanto magistrado superior. Interroga, pressiona, ameaça a mulher, depois as duas jovens filhas, e a arma nunca mais aparece. É aconselhado por outro quadro superior a desaparecer por uns tempos, até que a arma como símbolo máximo, apareça. Iman põe a família no seu automóvel e decide isolar-se, refugiar-se na terra da sua infância, num velho mosteiro abandonado. Aí vai exercer toda a sorte de pressão sobre as três, encarcera-as, priva-as do elementar, ameaça-as até que a filha mais velha desaparece levando consigo a arma que dizima gerações inteiras. A sua busca pelos escombros do edifício em ruínas é magnifica, como símbolo e derrocada de um poder impossível de suportar. Até que a dada altura pai e filha encontram-se frente a frente, com a mulher e a filha mais nova por perto. Ambos estão armados: ela com a pistola do pai, este com a que o colega fiel lhe emprestou. O pai ameaça a filha, esta tenta fazer-lhe compreender as suas razões, mas ele refugia-se nas palavras de um Deus tirano e num segundo de loucura a filha dispara e mata o pai que se afunda nos escombros da edificação. A criação daquela família aparentemente exemplar e unida, desaba e desabrocha em mentira e covardia, ódio e morte. O Poder enxameia o cérebro roído pela ideologia, paira omnipresente sobre todos os crédulos.
- O PCP é o braço direito da Intersindical. Não admira portanto que o seu Secretário-Geral, Sr. Paulo Raimundo, à mais pequena oportunidade - como no caso do aumento dos comboios da Fertagus e a desarrumação daí resultante e que eu já não vejo porque resolvida -, vem pedir que o serviço passe para a CP. Deus nos livre! A CP que faz todos os fretes partidários, nas tintas para os utilizadores da companhia, se pusesse mãos na Fertagus teríamos o mesmo espectáculo degradante de greves, comboios sempre em atraso, carruagens vandalizadas, interiores sujos, as pessoas como gado a serem transportadas de uma incerteza para um engano.
- Detenho-me por uns segundos mais nas progénies, infelizes e miseráveis personagens que antes de o serem já o eram. Aquele residual partido que dá pela sigla BE, na voz da viúva que o dirige, uma pobre autocrata emoldurada de um alo de santidade, quer impor o dever de proteger o “bom nome do partido” a todos os que inocentemente acreditam nas suas balelas. Se esta norma já existisse quando se destapou a moral e a ética praticada contra os seus funcionários, todos seriam postos na rua do partido. A mulher não brinca, arrogância e poder não lhe falta.
- Já aqui falei no assunto. Vou voltar a ele porque vem a propósito. Um dia estava eu com o João Corregedor a tomar café na Bertrand, quando ele, no decorrer da conversa, levanta um qualquer tema relacionado com o Bloco de Esquerda e logo eu vocifero: “Isso é um bando de queques que nunca por nunca ser, algum dia chegará ao poder.” O pobre do João, muito atrapalhado, pede-me que me cale, apontando quem está nas suas costas (portanto na minha frente). Eu que não tinha reparado na viúva debruçada sobre o portátil, decerto a inventar histórias que tanto entretêm os jornais e televisões, prossigo indiferente. Ela, a dada altura, para não me atirar como computador à cara, decide fechá-lo com ruído e deixar a sala de nariz cabisbaixo. Vade retro Satana.